Norma em Preto e Branco:
Imagens de Uma Estrela Decadente e Seu Mordomo
Pedro Delgado
A Cia de Teatro Você Sabe Quem mostrou no Teatro Bruno Kiefer, na noite de 6 de dezembro, o espetáculo Norma. A apresentação abriu a programação do Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE). Norma, segundo Eduarda Bento, que divide a direção do espetáculo com Thalles Echeverry, é resultado de um processo de criação inspirado no expressionismo alemão e no filme Crepúsculo dos Deuses (1950), dirigido por Billy Wilder. Citei a influência do expressionismo alemão antes que a obra de Wilder porque a expressividade dos atores ganha especial atenção na encenação. Em muitas cenas, inclusive, o texto ao invés de acrescentar na potência da teatralidade a fragiliza. A peça narra a história de Norma Desmond, uma atriz ícone do cinema mudo, que vive numa relação de dependência com seu mordomo, Max.
A primeira impressão:
Os diretores Eduarda Bento e Thalles Echeverry, que atua na peça ao lado de Isabelle Vignol, entregam ao público uma estética bem elaborada e de muita precisão na combinação dos signos utilizados na concepção da poética e da narrativa dramatúrgica. Quando a cortina da boca de cena é aberta, percebe-se uma imagem fria composta por uma luz branca que reforça a presença de poucos elementos cenográficos concebidos num formato geométrico em que se destacam as linhas retas em ângulos disformes, evidenciando uma escolha estética bem definida. Esse desenho geométrico estará sempre presente inclusive em pequenos elementos cênicos como telefone, xícaras, bules e ainda no painel pendurado ao fundo do palco com a foto de Norma. A posição inicial dos intérpretes também merece ser descrita. Bem à frente do palco, percebe-se um personagem masculino (Max). Ele está virado para o público. Mais ao fundo, em uma das laterais na saída de uma das coxias, virada para o centro do palco, está um personagem feminino (Norma). Ambos estão numa posição em que se percebem as mesmas formas geométricas dos elementos inanimados da cena. Os dois corpos apresentam expressividades fortes e exageradas lembrando esculturas expressionistas. Estou descrevendo as posições em que cada personagem se encontra na abertura da cortina porque desde o início fica clara a escolha com formas, expressões e movimentos dos corpos dos intérpretes, bem como as imagens que esses produzem ao desenvolverem suas ações durante todo o desenrolar da peça. Diga-se de passagem, esse é um dos principais destaques para a importância dos arranjos poéticos de Norma. Ajudando na construção do estado dramático, pontuando a expressividade dos personagens, quase que impercebível ressoa uma trilha sonora que reforça o clima um tanto sinistro da dramaturgia da cena. Os movimentos dos corpos dos intérpretes são precisos e muito afinados com a trilha e com a luz. Os figurinos em preto e branco reforçam e pontuam a estética do que poderíamos entender como sendo a utilização das técnicas do cinema mudo posta no palco para ajudar a contar o universo que Norma estrelava. Quero destacar aqui o domínio corporal e dos movimentos que brotam sempre em linhas retas, ampliando os corpos dos atores e reforçando a estética do expressionismo proposto, segundo Eduarda Bento, para a encenação.
A segunda impressão:
Depois do impacto da abertura do espetáculo, numa sintonia afinada, Isabelle (Norma) solicita uma intervenção de Thalles (Max) e esse, num gestual bastante exagerado, dá início a uma ação que é seguida da entrada de uma luz branca que acende e apaga muito rapidamente e que provoca a impressão de que os intérpretes se movimentam mais rápido. É nesse momento que a atriz que interpreta Norma inicia o seu primeiro texto e é também quando se percebe a pouca idade de Isabelle. O corpo frágil, porém de movimentos fortes, construído para Norma revela agora uma voz dissonante dos demais elementos expressivos. É através dessa voz, e não por falta de mérito da atriz, mas talvez por sua imaturidade fisiológica e de vivência dramática, que algo de potente de seu personagem se esvai. Norma não é mais tão potente como antes. O mesmo acontece com Thalles e seu Max. Os corpos potentes construídos para os personagens parece perder a força quando o elenco insere a voz. Entretanto, o espetáculo não perde qualidade enquanto poética visual pois a mudança fica muito mais num campo da percepção da expressividade vocal dos personagens, haja visto que todos os elementos cênicos continuam funcionando de forma precisa e muito bem articulados com os demais signos propostos.
A terceira impressão:
Passados o impacto e a expectativa dos primeiros minutos da peça, iniciam-se os conflitos que constroem a dramaturgia propriamente dita, e novamente me senti tomado pelos intérpretes e pela poesia das imagens construídas quase que numa sequência inesgotável. Logo nas primeiras cenas, Norma e seu mordomo nos brindam com dois momentos muito bem desenvolvidos em todos os sentidos que a arte do teatro pode proporcionar. No primeiro momento o mordomo lê as notícias de um jornal para a estrela, que quer saber se o nome dela consta na lista da premiação do Oscar. A cena é frágil e ao mesmo tempo potente pela expectativa criada por Norma para ver o que escreveram sobre o seu desempenho no último filme. Aqui quero chamar a atenção para o elemento utilizado como jornal. É usado uma espécie de plástico transparente que possibilita ao público perceber que ali não existe escrita nenhuma. O objeto usado recria o jornal e sua necessidade para a potência da existência da dramaturgia da cena. Já no segundo momento Norma dita um texto e o mordomo escreve. É uma cena muito bem desenvolvida em especial pela utilização de sonoplastia que nos possibilita ouvir o som dos teclados da máquina de escrever imaginária utilizada por Max. Assim, diante dos arranjos cênicos propostos pelo grupo, a fragilidade das vozes dos intérpretes já não é mais tão importante, pois suas capacidades de interpretação são evidentes e me conduziram a lugares e sensações agradáveis e brindaram o meu olhar de apreciador do teatro. No entanto, foi também nesse momento que atentei para algo não tão agradável aos meus ouvidos, mesmo sendo um apreciador de comédias. Os atores começaram a fazer algumas piadas, o que na minha opinião forçou o riso em momentos quase inoportunos, fragilizando o belo da poesia das imagens físicas e das ações dramáticas que vinham se desenvolvendo, como se o riso fosse mais importante que o sensível-poético ainda pulsante. Acredito que a inserção das piadas tenha sido uma escolha feita durante o processo de criação. Entretanto, acredito que se as tiradas de humor ocorressem em momentos mais apropriados o fluxo da energia da cena não seria interrompido, proporcionando maior absorção do sensível e do poético proposto pelas imagens, principalmente quando as cenas representadas eram cenas de um metateatro. Por exemplo, a representação de Medéia por Norma. Não que eu seja contra o riso e nem contra a piada no teatro dramático ou com intenções dramáticas, mas o clima frio e sóbrio criado para Norma e Max quando estes estão em locais fechados como o interior da casa é forte, intenso e potente, o que dispensa o riso. Repito que essa escolha pelo humor apenas fragiliza a potência poética já criada e posta em cena. A potência das imagens antes criadas torna-se frágil com a inserção das vozes dos atores e torna-se mais frágil ainda com a inserção das piadas quase enfraquecendo o interesse pelo acontecimento teatral proposto até então. Diante dessa mudança proposta, o espetáculo perde parte de sua potência poética inebriando o olhar do espectador em detrimento do humor. Acreditando que seja uma escolha consciente do grupo fazer esses deslocamentos com as sensações e os estados emocionais do público, ainda assim me sinto à vontade para deixar registradas estas impressões.
Passados o impacto e a expectativa dos primeiros minutos da peça, iniciam-se os conflitos que constroem a dramaturgia propriamente dita, e novamente me senti tomado pelos intérpretes e pela poesia das imagens construídas quase que numa sequência inesgotável. Logo nas primeiras cenas, Norma e seu mordomo nos brindam com dois momentos muito bem desenvolvidos em todos os sentidos que a arte do teatro pode proporcionar. No primeiro momento o mordomo lê as notícias de um jornal para a estrela, que quer saber se o nome dela consta na lista da premiação do Oscar. A cena é frágil e ao mesmo tempo potente pela expectativa criada por Norma para ver o que escreveram sobre o seu desempenho no último filme. Aqui quero chamar a atenção para o elemento utilizado como jornal. É usado uma espécie de plástico transparente que possibilita ao público perceber que ali não existe escrita nenhuma. O objeto usado recria o jornal e sua necessidade para a potência da existência da dramaturgia da cena. Já no segundo momento Norma dita um texto e o mordomo escreve. É uma cena muito bem desenvolvida em especial pela utilização de sonoplastia que nos possibilita ouvir o som dos teclados da máquina de escrever imaginária utilizada por Max. Assim, diante dos arranjos cênicos propostos pelo grupo, a fragilidade das vozes dos intérpretes já não é mais tão importante, pois suas capacidades de interpretação são evidentes e me conduziram a lugares e sensações agradáveis e brindaram o meu olhar de apreciador do teatro. No entanto, foi também nesse momento que atentei para algo não tão agradável aos meus ouvidos, mesmo sendo um apreciador de comédias. Os atores começaram a fazer algumas piadas, o que na minha opinião forçou o riso em momentos quase inoportunos, fragilizando o belo da poesia das imagens físicas e das ações dramáticas que vinham se desenvolvendo, como se o riso fosse mais importante que o sensível-poético ainda pulsante. Acredito que a inserção das piadas tenha sido uma escolha feita durante o processo de criação. Entretanto, acredito que se as tiradas de humor ocorressem em momentos mais apropriados o fluxo da energia da cena não seria interrompido, proporcionando maior absorção do sensível e do poético proposto pelas imagens, principalmente quando as cenas representadas eram cenas de um metateatro. Por exemplo, a representação de Medéia por Norma. Não que eu seja contra o riso e nem contra a piada no teatro dramático ou com intenções dramáticas, mas o clima frio e sóbrio criado para Norma e Max quando estes estão em locais fechados como o interior da casa é forte, intenso e potente, o que dispensa o riso. Repito que essa escolha pelo humor apenas fragiliza a potência poética já criada e posta em cena. A potência das imagens antes criadas torna-se frágil com a inserção das vozes dos atores e torna-se mais frágil ainda com a inserção das piadas quase enfraquecendo o interesse pelo acontecimento teatral proposto até então. Diante dessa mudança proposta, o espetáculo perde parte de sua potência poética inebriando o olhar do espectador em detrimento do humor. Acreditando que seja uma escolha consciente do grupo fazer esses deslocamentos com as sensações e os estados emocionais do público, ainda assim me sinto à vontade para deixar registradas estas impressões.
A quarta e última impressão:
O meu quarto deslocamento e, portanto, minha quarta impressão teve início quando Norma e Max foram passear no jardim. Aqui o clima soturno da encenação deu lugar a um clima solar. Novamente signos, como por exemplo a luz que pela primeira vez na peça traz um tom amarelado para cena, dialogam em harmonia. Os personagens observam outras pessoas e tem-se a impressão de que eles não estão mais no isolamento de uma já quase loucura de Norma ou, talvez de Max. Acredito que talvez seja nesse momento que a dramaturgia abre espaço para a inserção do humor. O clima é primaveril e propício ao riso. Durante o passeio Norma e Max demonstram uma relação de amizade que permite falar de seus desafetos com outras pessoas. Isso os torna cúmplices e, portanto, leves o bastante para rirem e para fazerem o público rir. Dessa forma, o jardim se caracteriza como um território leve sem perder o tempero dramático da relação e o exagero proposto na expressividade dos corpos dos intérpretes. Me senti convidado a também passear pelo jardim, e isso me deu vontade de ser feliz e fazer parte do acontecimento teatral no qual estava inserido.
De volta ao interior da casa, novamente a cena retorna ao estado tenso e exageradamente representado. O clima de poesia dramática é instaurado novamente e Norma volta-se para sua busca incessante por reconhecimento e fama que a leva a viver num estado entre o real e o ficcional. Assim, ao descobrir que seu mordomo a traía, provocando seu afastamento das produções cinematográficas, Norma, num misto de realidade e ficção, acaba por tirar a vida de seu único companheiro. Essa cena final é um dos momentos de destaque de interpretação de Isabelle e Thalles, com ênfase para o desenho de luz que reforça a imagem construída pelos dois corpos. Dessa forma, concluo reforçando o mérito e a qualidade das escolhas dos elementos que a Cia de Teatro Você Sabe Quem arriscou colocar em cena, assim como o cuidado com o diálogo entre a luz, os figurinos, a cenografia, a maquilagem e a interpretação e expressividade dos atores. É um espetáculo poético e sensível que merece ser visto pelo enriquecimento e pelo deleite que provoca no espectador. A direção é de Eduarda Bento e Thalles Echeverry com interpretação de Isabelle Vignol e Thalles Echeverry, a Iluminação é de Diego Carvalho, a sonoplastia é de Bruno Oliveira, o cenário e o figurinos são de Aline Cotrim e a dramaturgia é assinada por Thalles Echeverry. Sucesso e vida longa a Norma!
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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