sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


A potência dramática dos corpos severinos

Pedro Delgado


   
Livremente inspirada nas obras Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o Grupo de Estudos Teatrais (GET) apresentou no Teatro Bruno Kiefer, na noite de 4 de dezembro, a peça Teima Filho, Teima que Dá. A apresentação do grupo de Gravataí fez a abertura do 4° Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE)

Para representar a saga de um povo que queima, arde e sufoca sob um sol escaldante, cujos pés descalços sangram sobre a terra seca, o elenco de Teima Filho, Teima que Dá, sob a direção de Izabel Cristina, mergulha em uma atmosfera miserável para mostrar sua potencialidade dramatúrgica. Desde o momento em que o público se coloca diante do palco, onde a presença da morte se revela por meio de caveiras de animais mortos e de folhas secas espalhadas pelo chão, entre outros elementos, fica evidente que o que está sendo colocado em cena é uma poética sensível e bem pensada. Essa primeira impressão vai se confirmando à medida que o elenco adentra o espaço cênico. São corpos que se dilaceram e se reconstroem, dando força e vida aos demais signos já postos em cena. Ou seria morte? Já que a vida, nesse caso, é a ameaça da morte iminente.

A expressividade de cada corpo e as imagens construídas com os mesmos são o ponto forte da encenação.  Dez atores e atrizes recriam suas formas, ressignificam seus corpos e deles fazem brotar poesias e uma dramaturgia tão potente que é quase impossível escolher onde fixar o olhar, tantos são os corpos e tantas são as imagens criadas.  Percebem-se corpos em devires bicho, e bicho que viram corpos expressivos. É poesia na veia, bem como possibilidades de encontros com a teatralidade.

Entretanto, no momento em que o elenco introduz diálogos e narrativas, que são, na maioria das vezes, endereçadas diretamente ao público, o espetáculo perde potência e, em alguns momentos, chega a parecer frágil. No entanto, isso não chega a prejudicar o andamento do espetáculo, principalmente porque a forma como o elenco, em vários momentos, entoa o texto em forma de coro é muito bom de ouvir. Essa escolha por diálogos em coro também ajuda a potencializar a dramaturgia e a estética das cenas. 

Quero destacar a grande sacada de introduzir um pequeno boneco no papel de retirante, que aparece logo no início da peça e que volta no final. Ele ajuda, inteligentemente, a resolver questões da narrativa, criando possibilidades simbólicas que enriquecem a estrutura dramática proposta. A cena final, em que o retirante na forma de boneco é sepultado em uma cova rasa, possui grande impacto dramático e reforça a grandiosidade e a capacidade inventiva da dramaturgia teatral. A teatralidade simbólica do boneco morto é potencializada pela bela voz de Eulália Figueiredo, que recebe o auxílio de uma iluminação fria produzida por lanternas que iluminam os rostos dos atores. É um dos grandes momentos da peça. 

Como todo o processo de criação teatral, em que cada espectador faz sua leitura, senti que por vezes a interpretação do elenco, no que se refere à dramatização de partes dos textos, se aproximou do exagero emocional, principalmente porque os textos, por si só, já são dramáticos o suficiente. Também me parece que a utilização frequente de luz azul, que em cena constrói um clima frio, diminui o impacto do calor e da seca. Mas isso não chega a tirar o mérito do importante trabalho desenvolvido pela diretora, pelo elenco e pela equipe técnica do GET. Vida longa a Teima Filho, Teima que Dá

Crédito da foto: Carolina Zogbi 



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