terça-feira, 10 de dezembro de 2019


A Lágrima que Procuramos

Camilo de Lélis


Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues (1912-1980), montagem da Cia Retalhos de Teatro (Santa Maria), inicia com depoimentos gravados pelo autor. A voz de Nelson já é uma excelente entrada para o espetáculo. Seus silogismos catastróficos, suas heresias santas. “Um sujeito devia beijar uma única mulher em sua vida, ou simplesmente não beijar.” - poético, romântico, medieval. “Nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais” - patético, machista, sexista. Não dá para explicar Nelson Rodrigues, nem lendo sua biografia O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro. A vida dele supera tudo o que ele escreveu, supera em tristezas, tragédias e absurdos. Tinha de escrever por dinheiro, para sustentar a família, complementar seus ganhos como jornalista e comentarista esportivo. A sua vida não era um jardim de flores, mas um deserto de espinhos. Embora algumas flores houvessem brotado nos cactos. Transitórios amores, algum sucesso de crítica e de público no teatro... Pouca coisa alegre em sua vida tumultuada.

Nelson gostava de provocar e desestabilizar a moral burguesa, os falsos carolas, a hipocrisia da família patriarcal. E, para isso, sabia que tipo de palavras era o mais apropriado para ferir e revoltar. Hoje, com as correções do discurso chamado politicamente correto, já ouvi dizer que quiseram tirar o Nelson do currículo das artes cênicas. Também tenho tido notícias que nosso maior dramaturgo contemporâneo está na crista da onda em montagens na Europa. Inclusive recentemente houve um festival só para ele em Londres. Enfim, como ele mesmo dizia “A unanimidade é burra”.

“De graça, não posso” diz a apaixonada Aurora para o cafajeste Bibelô. E assim começamos a adentrar no universo dos gatinhos, não mais apenas da obra de Nelson Rodrigues, mas da criação autoral do encenador Helquer Paez, com suas partituras simbolistas atravessando o realismo de Nelson. Vejamos. O Nelson inclui o simbolismo enquanto temática, ou seja, uma gata morre ao mesmo tempo em que dá à luz a sete filhotes. Um homem chora por um único olho, uma lágrima sem par. Outro homem sempre se veste de branco, etc. Porém, nas ações propostas nas rubricas, Nelson é realista. As cenas mais fortes, como o estupro de Silene, a adolescente que protagoniza a peça, se dão fora de cena, longe dos olhos, obscenas, literalmente. Sendo o próprio texto de Nelson um estupro aos ouvidos do espectador, que não pode deixar de se horrorizar com a realidade que suas palavras escancaram. O encenador Helquer Paez, por sua vez, mostra tudo, se ouve e se vê, em cena aberta, todo o horror das situações rodrigueanas. Aí é que entra o simbolismo na luz, na coreografia e na trilha sonora, que remete a estados subjetivos. Vemos e não vemos, sonhamos ou temos pesadelos. Assim é a encenação de Helquer Paez. 

O diretor sabe editar, decupar e fazer fusões em que uma cena termina dentro de outra cena.  É o que acontece numa das cenas iniciais, quando o casal Aurora e Bibelô estão nus, cercados por todos os outros atores vestidos, num ambiente simbolista, em que se escuta “A minha vida dá um romance” e “Atira, vagabunda, atira”; num movimento brusco de luz, sem corte, surge o realismo interior/casa, com a filha Débora trazendo um cheque para a mãe depositar na conta do enxoval de Silene, a única virgem entre elas, a esperança de redenção da família desestruturada pela miséria moral e a prostituição.

Estou escrevendo pela segunda vez sobre essa obra. Na primeira crítica, para o festival de Santa Rosa, enfatizei as referências de Totem e Tabu, de Freud, e da obra cinematográfica Feios, Sujos e Malvados, de Ettore Scola, sem esquecer da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, na qual um homem está em busca de um criminoso, que se revela ser ele mesmo. Agora, vou me ater à direção, que soube imprimir sua marca registrada. Um encenador que tem personalidade, sabe fazer citações, mas não imita ninguém. Isso é uma dádiva, numa época em que se está fazendo teatro copiando imagens do YouTube. 

Nessa encenação de Os Sete Gatinhos, há algo bem peculiar. Apresenta-se uma transgressão da verossimilhança. A peça se torna anacrônica, mesmo sendo de época. Pois, como mostrar corpos tatuados nas mulheres da década de 1950? Ou uma mulher de cabeça raspada, sem ser interna num manicômio, naquela época? Essa transgressão formal, que poderia causar enfraquecimento na verdade cênica, torna-se na encenação de Paez, um libelo feminista. O presente adentra a cena e mostra como são as mulheres de hoje. Então temos um palimpsesto, estando na pele das atrizes e em suas expressões a mulher atual; e abaixo disso, no texto de Nelson, temos a de ontem, que ainda está viva, nos questionando sobre desejos secretos e taras escusas. Também em algumas peças do figurino há esse desencontro geracional. A calcinha de Silene está no passado e a lingerie de Arlete está no presente. Assim, as tensões se distendem mais e mais para além do texto, chegando à regressão de uma família contemporânea às origens paleolíticas. 

Outro elemento encantatório é a inserção brechtiana de uma cantora em dois momentos. A mesma atriz que interpreta Débora faz esse papel. Talvez ela mesma, a filha do miserável contínuo Noronha, seja uma cantora de boates ou cabarés de terceira classe. Uma atmosfera “on the road”, lembrando um pouco o cineasta e dramaturgo Sam Shepard, vem nos envolver.

A trilha sonora é muito bem escolhida e aproveitada nos momentos mais dramáticos, ela adoça a crueldade e nos diz que isso é um sonho ruim, que pode passar. Mas talvez não. Acredito que só o amor salvaria esses personagens tão frágeis diante do inusitado e avassalador destino humano. Um destino que não se atém à História. Um destino que se quer cósmico, tanto demoníaco quanto inefável.

Restam, soando em algum lugar inabitado, as palavras de Nelson Rodrigues, pronunciadas pelos trágicos gatos da peça, que estão à mercê de suas pulsões incontroláveis: “Canalhas somos todos nós”, “Agora podemos cheirar mal e apodrecer”, “Aurora, eu quero que você cuspa na minha cara”, “Silene, eu tenho uma filha da sua idade”.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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