Um encenador proibido aos conservadores
Raquel Guerra
Com direção de Helquer Paez e um elenco engajado, o
espetáculo Os Sete Gatinhos, da Cia Retalhos de Teatro (Santa Maria) apresentou
na tarde do dia 7 de dezembro, no Teatro Bruno Kiefer, um espetáculo que
agradou a plateia e que fez jus à estética proposta pelo texto escrito por Nelson
Rodrigues em 1958. A dramaturgia foi muito bem atualizada, e a montagem manteve
sua contemporaneidade. Esta sensação é também resultado da direção do
espetáculo e do empenho do diretor em manter sua concepção sobre a obra
literária.
Estreada em 2015, a encenação de Helquer Paez traz nove
atores que apresentam o retrato que Nelson Rodrigues (1912-1980) fez da família
brasileira de seu tempo. Diga-se de passagem, uma família conservadora nos
costumes, mas liberal na economia. Esse é um dos aspectos que chama a atenção
na escolha de Paez pelo dramaturgo pernambucano, credenciado pelos 30 anos de
experiência como artista e 25 anos à frente da Retalhes de Teatro.
Pode parecer uma ode ao encenador, pouco comum nos dias de hoje,
mas creio que a obra teatral apresentada é resultado de uma boa encenação.
Pelos seus anos de estrada, acredito que um artista como Helquer Paez, que
circula com sua vasta produção no interior do Estado, concretiza aquilo que o
próprio FESTE propaga: o Teatro é vivo e se renova nos festivais do Rio Grande
do Sul. E que alegria ver a cena gaúcha pela perspectiva deste trabalho.
A prática viva do fazer teatral supera as escolas de Teatro,
as academias, as oficinas, os conservatórios e qualquer espaço institucional
que queira validar-se como instância do saber teatral. O Teatro é uma arte viva,
e quem não pratica não vive. Nesse sentido, o pesquisador Laédio José Martins,
em relato oral sobre sua experiência na fruição da encenação de Helquer
Paez para Os Sete Gatinhos, foi certeiro na análise: “Embora o elenco seja
composto em sua maioria de atores jovens, e isso é mais mérito do encenador do
que demérito do elenco, a profundidade e complexidade da relação humana que
está no jogo proposto pelo dramaturgo não perde sua densidade, e o que vaza, no
decorrer da narrativa, é a hipocrisia que cada um de nós transpira…” E a montagem
transborda Nelson Rodrigues sobre nós, espectadores.
Logo no início, a primeira impressão é que o realismo de
Nelson Rodrigues irá dominar sobre a encenação, trazendo à cena a voz do
próprio Nelson, em suas crônicas radiofônicas, e associando-a à imagem do
estereótipo do malandro carioca, homem da época. Talvez essas primeiras cenas
do Os Sete Gatinhos sejam os momentos em que a encenação parece que irá assumir
uma estética piegas, e que iremos ver o mesmo do mesmo. No entanto, em 90 minutos
de espetáculo, o público sentado nas poltronas da Bruno Kiefer não perde a
atenção e não fica entediado. O clichê rodrigueano parece que irá imperar, mas,
apesar do respeito que o diretor demonstra para com a obra literária, parece-me
que a encenação é que conquista o público.
Um elemento que chamou minha atenção foram as máscaras.
Embora literal no caso das máscaras de gato, o uso das mesmas provoca um
estranhamento na cena, que nos faz pensar na animalidade da relação familiar,
humana e doentia presente nos vínculos expostos na peça: a irracionalidade e a
estruturação de uma psiquê patológica surgem como o primeiro núcleo social dos
personagens. A peça mostra que o interior na família tradicional não é
exatamente o que prega a tradição…
Em relação à atuação, pareceu-me que o elenco mostra unidade,
coerência e harmonia durante toda a encenação. Destaco o trabalho de Júlio
Aranda: ele apresenta uma performance cujo trabalho físico/vocal se contrapõe à
idade cronológica e à postura física cotidiana do ator. Aranda desenvolve muito
bem o personagem do pai, não apenas pelo aspecto externo, mas pela vida
interior que o ator assume ao interpretar tal papel.
Criador de longa trajetória, diretor, produtor, educador e
ator ativo na cena teatral gaúcha, incentivador de várias gerações de artistas,
Helquer Paez merece nosso reconhecimento como uma resistência da arte teatral
não apenas em Santa Maria, mas nas diversas cidades em que trabalha e apresenta
seus espetáculos. Merece destaque o fato que, por sua companhia, já passaram
muitos atores, iluminadores, produtores e outros profissionais de artes cênicas.
Com três décadas de profissão, é mais que merecido que um artista desse calibre
tenha o reconhecimento da plateia, da crítica e dos organizadores dentro de um
evento tão importante como o FESTE.
É preciso que se diga que um trabalho como este, selecionado
para o FESTE, possibilita aos grupos do Interior que compartilham dos festivais
a comprovação de que eles movimentam a arte teatral mais do que a academia,
porque chegam a lugares geográficos e sociais que as escolas de Teatro não
alcançam. Nesse sentido, um grupo como a Cia Retalhos de Teatro, que se mantém
na ativa há tanto tempo, é mais que merecedor de participar de um festival como
o FESTE. É digno de aplauso e de reconhecimento, como ocorreu na sessão pública
que pude presenciar durante o belíssimo evento promovido pela Casa de Cultura
Mário Quintana. Vida longa ao FESTE! Vida longa à Cia Retalhos de Teatro!
Vida longa ao artista Helquer Paez!
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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