Alma Valente propõe e discute conflitos contemporâneos
Cristiano Goldschmidt
Apresentada no Teatro Bruno Kiefer, na tarde de ontem, Alma
Valente, da Cia Retalhos de Teatro, da cidade de Santa Maria (RS), integra a
programação do 3º Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE).
Com texto e direção assinados por Julio Cesar Aranda, a peça,
que gira em torno de conflitos contemporâneos, propõe discussões interessantes,
dando ao espectador a oportunidade de olhar para questões importantes a partir
da perspectiva de diferentes gerações.
Martírio (Débora
Matiuzzi), de origem pobre, ao largar seu povo e juntar-se ao
governo, sofre uma espécie de aprisionamento no chamado “novo mundo”, tendo sua
mente manipulada pelo governo, negando seu passado e escondendo-o de sua filha,
Alegra (Alexia Karla). Com vergonha de sua origem cigana, seu objetivo é servir ao governo,
ajudando-o a capturar Rafael (Victor Lavarda), Azul (Natalia Krum) e Âmbar (Camila Marques), os três rebeldes do “velho mundo”, passando
a controlar passado, presente e futuro, transformando-os em marionetes, ou em
escravos não pensantes. Estes se juntam a Mau e Alegra, tornando-se os valentes
que livrarão a todos das terríveis consequências da manipulação de um governo abusivo
e autoritário.
Conflitos de gerações, excesso de vaidade (nas figuras de
Mau e de Martírio), romance e gravidez na adolescência são abordados de forma
leve, dando um toque de realidade a esta peça que transita entre o real e o
imaginário. O “novo mundo”, no qual Martírio vive com a filha Alegra, com o
companheiro e fiel escudeiro Maximus (Helquer Paez), é um retrato de nosso tempo: ali se
desenrolam os conflitos, confrontando os
perigos do excesso da tecnologia com as coisas simples da vida e com os valores
que realmente contribuem para a nossa felicidade.
Em tempos de Fake News, a peça nos alerta que o sistema
dominante é muito maior do que podemos imaginar, e aborda isso com clareza ao
apresentar um governo que pretende resetar a mente das pessoas e exercer sobre
elas um controle opressor. Ao afirmar que “o povo precisa de trabalho e não de
cultura”, a personagem Martírio, representante do governo (manipulada por ele),
faz uma forte crítica política, mostrando que domínio e censura são
características de indivíduos autoritários, e que devemos estar sempre atentos
a estes.
A crítica política está presente ainda em rápida passagem
que aborda a meritocracia como um sistema justo de ascensão social, como se
todos nascêssemos com as mesmas condições de igualdade e de oportunidades. Ao
refletir sobre questões contemporâneas, abordando temas espinhosos que de
alguma forma sempre fizeram parte da história da humanidade, Alma Valente dá
seu recado e nos pergunta qual o propósito de resistirmos num mundo naufragado
em preconceitos.
Mesmo sendo um texto que transita entre o romance, a comédia
e a aventura, há momentos em que a personagem Martírio traz uma densa carga
emocional, mostrando que muitas vezes somos resultado de nossas frustrações, que
estas podem nos empurrar para perigosas armadilhas, mas que podemos vencê-las com
amor, reconhecendo nossas falhas, mudando assim o rumo de nossas vidas.
Embora pouco confusa nas transições entre uma cena e outra,
falhas que talvez possam ser reavaliadas pela direção, Alma Valente mostra um
elenco afinado, com boa preparação corporal e vocal, o que se evidencia nas
interpretações. Sem fazer uso de cenário, a produção conta com iluminação e
trilha sonora que ajudam a criar o clima necessário para o desenvolvimento das
ações e para causar certo suspense no espectador. Figurinos e adereços são bem
acabados e mostram o cuidado com que o grupo se dedica ao ofício, deixando
claro que o teatro produzido no interior do Estado cresce e se aperfeiçoa.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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