domingo, 9 de dezembro de 2018


Alma Valente propõe e discute conflitos contemporâneos

Cristiano Goldschmidt


Apresentada no Teatro Bruno Kiefer, na tarde de ontem, Alma Valente, da Cia Retalhos de Teatro, da cidade de Santa Maria (RS), integra a programação do 3º Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE). 

Com texto e direção assinados por Julio Cesar Aranda, a peça, que gira em torno de conflitos contemporâneos, propõe discussões interessantes, dando ao espectador a oportunidade de olhar para questões importantes a partir da perspectiva de diferentes gerações. 

Martírio (Débora Matiuzzi), de origem pobre, ao largar seu povo e juntar-se ao governo, sofre uma espécie de aprisionamento no chamado “novo mundo”, tendo sua mente manipulada pelo governo, negando seu passado e escondendo-o de sua filha, Alegra (Alexia Karla). Com vergonha de sua origem cigana, seu objetivo é servir ao governo, ajudando-o a capturar Rafael (Victor Lavarda), Azul (Natalia Krum) e Âmbar (Camila Marques), os três rebeldes do “velho mundo”, passando a controlar passado, presente e futuro, transformando-os em marionetes, ou em escravos não pensantes. Estes se juntam a Mau e Alegra, tornando-se os valentes que livrarão a todos das terríveis consequências da manipulação de um governo abusivo e autoritário. 

Conflitos de gerações, excesso de vaidade (nas figuras de Mau e de Martírio), romance e gravidez na adolescência são abordados de forma leve, dando um toque de realidade a esta peça que transita entre o real e o imaginário. O “novo mundo”, no qual Martírio vive com a filha Alegra, com o companheiro e fiel escudeiro Maximus (Helquer Paez), é um retrato de nosso tempo: ali se desenrolam os conflitos,  confrontando os perigos do excesso da tecnologia com as coisas simples da vida e com os valores que realmente contribuem para a nossa felicidade.

Em tempos de Fake News, a peça nos alerta que o sistema dominante é muito maior do que podemos imaginar, e aborda isso com clareza ao apresentar um governo que pretende resetar a mente das pessoas e exercer sobre elas um controle opressor. Ao afirmar que “o povo precisa de trabalho e não de cultura”, a personagem Martírio, representante do governo (manipulada por ele), faz uma forte crítica política, mostrando que domínio e censura são características de indivíduos autoritários, e que devemos estar sempre atentos a estes. 

A crítica política está presente ainda em rápida passagem que aborda a meritocracia como um sistema justo de ascensão social, como se todos nascêssemos com as mesmas condições de igualdade e de oportunidades. Ao refletir sobre questões contemporâneas, abordando temas espinhosos que de alguma forma sempre fizeram parte da história da humanidade, Alma Valente dá seu recado e nos pergunta qual o propósito de resistirmos num mundo naufragado em preconceitos.
Mesmo sendo um texto que transita entre o romance, a comédia e a aventura, há momentos em que a personagem Martírio traz uma densa carga emocional, mostrando que muitas vezes somos resultado de nossas frustrações, que estas podem nos empurrar para perigosas armadilhas, mas que podemos vencê-las com amor, reconhecendo nossas falhas, mudando assim o rumo de nossas vidas.

Embora pouco confusa nas transições entre uma cena e outra, falhas que talvez possam ser reavaliadas pela direção, Alma Valente mostra um elenco afinado, com boa preparação corporal e vocal, o que se evidencia nas interpretações. Sem fazer uso de cenário, a produção conta com iluminação e trilha sonora que ajudam a criar o clima necessário para o desenvolvimento das ações e para causar certo suspense no espectador. Figurinos e adereços são bem acabados e mostram o cuidado com que o grupo se dedica ao ofício, deixando claro que o teatro produzido no interior do Estado cresce e se aperfeiçoa.

Crédito da foto: Giuliano Bueno








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