O ferreiro e a morte: “Por Hécuba”
por Marcelo Ádams
O texto teatral El herrero y la muerte foi escrito em 1981
pelos uruguaios Mercedes Rein e Jorge Curi, tendo estreado em Montevidéu
naquela ano. Segundo a coautora, ela e Curi decidiram criar uma nova versão
para os palcos desse conto medieval por considerarem-no teatralmente potente, o
que pode ser aferido pela longa lista precedente de versões dessa fábula: na
França, na Alemanha, na Rússia e em vários países da América Latina. Ainda que
em várias das versões a profissão do protagonista se mantenha como ferreiro,
Mercedes Rein cita algumas em que a personagem principal é um soldado ou um mendigo.
Da mesma forma, nem sempre seu nome é Miséria. Essas variações não encobrem a
simplicidade da história, focada em um homem que recebe de Jesus e de São Pedro
a graça de ver atendidos três desejos de sua escolha. O homem opta por ter o
poder de manter qualquer um preso no alto de uma escada, se porventura tiver
subido nela; nunca perder no jogo; e ganhar “meia horinha” a mais de vida no
momento em que a Morte chegar para buscá-lo. Esses três desejos são os que
movem a ação da história, e de fato têm potencial para se tornarem
dramaticamente eficazes numa encenação por lidarem com anseios universais,
facilmente identificáveis pela maioria das pessoas.
A Cia. Cena Viva de Santa Rosa/RS, liderada por Jadson
Silva, incumbiu-se de encenar O ferreiro e a morte. A especificidade principal
da turma de jovens que se divide nos numerosos papéis requeridos pela adaptação
do texto de Rein e Curi é a sua procedência: são todos alunos de escolas de
Santa Rosa, cidade onde Jadson ministra oficinas teatrais no contraturno
escolar. Segundo o oficineiro, o grupo é composto por alunos e alunas de
diferentes escolas e séries, o que implica em variadas idades: Joana Dorfer, por
exemplo, que atua como Jesus na peça, tem 11 anos, e está ao lado de jovens de
até 16 ou 17 anos.
Tal característica etária do coletivo poderia fazer prever
que o resultado cênico se apresentaria excessivamente imaturo e contaminado
pela insegurança, compreensível em quem está dando os primeiros passos na
linguagem teatral. Somada a isso, a expectativa de apresentar seu trabalho na
capital gaúcha, oportunidade que, conforme foi verbalizado por Jadson ao final
da apresentação, nunca havia sido cogitada pelos jovens. Para minha satisfação,
tal previsão não se concretizou totalmente: alguns trabalhos de atuação
apresentaram detalhamento e entendimento das técnicas teatrais, bem como a
encenação, que em determinados momentos traz soluções interessantes.
Jadson é o responsável por quase todos os elementos que se
veem em cena: encenação, figurinos, iluminação, sonoplastia, maquiagem e
cenografia. Para dar conta a contento de toda essa carga de trabalho e ainda
protagonizar o espetáculo, atuando como Miséria, é preciso muita boa vontade –
tanto sua como de todos os atores e atrizes, seus alunos. Essa centralização de
funções, certamente inevitável dado seu papel de professor do grupo, cobra seu
preço. Os figurinos, ainda que não se afastem do conveniente para caracterizar
as figuras que compõem o espetáculo, se ressente de melhor acabamento em alguns
casos. Materiais excessivamente simples ou mesmo cenicamente pobres denunciam a
sobrecarga de funções do responsável. Se houvesse maior investimento na
aquisição de figurinos mais elaborados, ou se fosse delegada a outra pessoa a
função de pensar e produzir esses elementos, certamente o espetáculo ganharia
em qualidade. O mesmo pode ser dito da iluminação, extremamente simples como
concepção e não bem afinada tecnicamente no espaço cênico, deixando algumas
áreas na penumbra, o que também prejudica em parte a encenação. A cenografia,
que se limita a uma escada e uma cadeira, apresenta apenas o absolutamente
essencial para a ação. Penso, entretanto, que preencher o espaço com outras
informações visuais faria bem ao espetáculo. A trilha sonora e algumas peças do
figurino sugerem que a ambientação da história é inspirada no tradicionalismo
gaúcho, pois há pilchas e ouvem-se algumas conhecidas canções tradicionalistas.
Nesse sentido, a cenografia poderia investir em alguns elementos encontrados
nas habitações, pobres e ricas, do nosso interior; ou, de outra forma, em
painéis de pano, por exemplo, que poderiam ser texturizados para representar as
cores, as paisagens, os temas que compõem o universo gaudério. Tais elementos
enriqueceriam e dariam acabamento à visualidade da encenação.
Confesso que a encenação não me conquistou imediatamente: de
início estranhei a timidez de alguns e a excessiva simplicidade para contar a
história. Eu esperava ver teatralidade sobre o palco. Com o avançar da
narrativa, entretanto, tive algumas surpresas com soluções da encenação que me
fizeram tão bem que, agora, lamento não terem sido incorporadas à totalidade do
espetáculo. Esses laivos de criatividade cênica pareciam, em contraposição à
previsibilidade de outros momentos, pertencer a espetáculos diferentes. Meu
conselho é tentar homogeneizar, de alguma forma, as soluções teatrais,
oferecendo aos espectadores, desde o início, a possibilidade de serem
envolvidos pela atmosfera fantástica proposta pela fábula da Morte que é
aprisionada no alto de uma escada.
O fato é que a ingenuidade do trabalho, no mais positivo
sentido, me cativou. Ao final do espetáculo, quando o numeroso grupo de jovens
veio receber os aplausos capitaneado por Jadson, também um tanto nervoso e
feliz, me comovi com a força que a arte tem de unir as pessoas. Neste caso,
estamos falando de teatro, mas poderíamos usar como exemplo qualquer outra
expressão artística. A arte agregou aquele grupo de jovens com um objetivo teatral
que, segundo o pensamento de muitos, não tem nenhuma função prática no mundo. A
arte não serve para nada, pode-se alegar. A arte não mata a fome e não dá
moradia aos que necessitam. No entanto, ao colocar seres humanos pensando e
agindo em direção a um objetivo comum – produzir beleza e reflexão sobre o que
é ser humano –, o teatro cumpre uma das mais nobres funções, que é a de nos
colocar em relação, de nos aproximar. Todos aqueles jovens viveram e dedicaram
muitos momentos de suas vidas em prol desse sentimento de humanidade que, ao
final da apresentação de O ferreiro e a morte, me tocou.
Lembro de uma passagem do Hamlet de William Shakespeare, na
qual o protagonista, ao se referir a um dos atores que vira interpretar uma
cena trágica, se surpreende com o poder que nós artistas temos de criar empatia
com uma ficção. Hamlet recorda que o ator em questão se debulhava em sofrimento
por uma personagem que, de fato, não existia, era apenas um nome: Hécuba. O
ator chorava por Hécuba, dedicava suas lágrimas e todo seu pranto a essa mulher
imaginária, menos concreta que qualquer grão de areia. E essa imaginação
poderosa do artista, que se coloca empaticamente no lugar de outros e outras,
faz do artista de teatro, ainda que talvez um ser sem uma função prática fundamental
em nossa sociedade, alguém que, paradoxalmente, exerce a mais bela e mais
indispensável função que existe no mundo: olhar para os outros e sofrer e se
alegrar com a condição humana. Os jovens de Santa Rosa atuaram para si, para
nós e por Hécuba.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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