domingo, 9 de dezembro de 2018


O ferreiro e a morte: “Por Hécuba”

por Marcelo Ádams


O texto teatral El herrero y la muerte foi escrito em 1981 pelos uruguaios Mercedes Rein e Jorge Curi, tendo estreado em Montevidéu naquela ano. Segundo a coautora, ela e Curi decidiram criar uma nova versão para os palcos desse conto medieval por considerarem-no teatralmente potente, o que pode ser aferido pela longa lista precedente de versões dessa fábula: na França, na Alemanha, na Rússia e em vários países da América Latina. Ainda que em várias das versões a profissão do protagonista se mantenha como ferreiro, Mercedes Rein cita algumas em que a personagem principal é um soldado ou um mendigo. Da mesma forma, nem sempre seu nome é Miséria. Essas variações não encobrem a simplicidade da história, focada em um homem que recebe de Jesus e de São Pedro a graça de ver atendidos três desejos de sua escolha. O homem opta por ter o poder de manter qualquer um preso no alto de uma escada, se porventura tiver subido nela; nunca perder no jogo; e ganhar “meia horinha” a mais de vida no momento em que a Morte chegar para buscá-lo. Esses três desejos são os que movem a ação da história, e de fato têm potencial para se tornarem dramaticamente eficazes numa encenação por lidarem com anseios universais, facilmente identificáveis pela maioria das pessoas.

A Cia. Cena Viva de Santa Rosa/RS, liderada por Jadson Silva, incumbiu-se de encenar O ferreiro e a morte. A especificidade principal da turma de jovens que se divide nos numerosos papéis requeridos pela adaptação do texto de Rein e Curi é a sua procedência: são todos alunos de escolas de Santa Rosa, cidade onde Jadson ministra oficinas teatrais no contraturno escolar. Segundo o oficineiro, o grupo é composto por alunos e alunas de diferentes escolas e séries, o que implica em variadas idades: Joana Dorfer, por exemplo, que atua como Jesus na peça, tem 11 anos, e está ao lado de jovens de até 16 ou 17 anos.

Tal característica etária do coletivo poderia fazer prever que o resultado cênico se apresentaria excessivamente imaturo e contaminado pela insegurança, compreensível em quem está dando os primeiros passos na linguagem teatral. Somada a isso, a expectativa de apresentar seu trabalho na capital gaúcha, oportunidade que, conforme foi verbalizado por Jadson ao final da apresentação, nunca havia sido cogitada pelos jovens. Para minha satisfação, tal previsão não se concretizou totalmente: alguns trabalhos de atuação apresentaram detalhamento e entendimento das técnicas teatrais, bem como a encenação, que em determinados momentos traz soluções interessantes.

Jadson é o responsável por quase todos os elementos que se veem em cena: encenação, figurinos, iluminação, sonoplastia, maquiagem e cenografia. Para dar conta a contento de toda essa carga de trabalho e ainda protagonizar o espetáculo, atuando como Miséria, é preciso muita boa vontade – tanto sua como de todos os atores e atrizes, seus alunos. Essa centralização de funções, certamente inevitável dado seu papel de professor do grupo, cobra seu preço. Os figurinos, ainda que não se afastem do conveniente para caracterizar as figuras que compõem o espetáculo, se ressente de melhor acabamento em alguns casos. Materiais excessivamente simples ou mesmo cenicamente pobres denunciam a sobrecarga de funções do responsável. Se houvesse maior investimento na aquisição de figurinos mais elaborados, ou se fosse delegada a outra pessoa a função de pensar e produzir esses elementos, certamente o espetáculo ganharia em qualidade. O mesmo pode ser dito da iluminação, extremamente simples como concepção e não bem afinada tecnicamente no espaço cênico, deixando algumas áreas na penumbra, o que também prejudica em parte a encenação. A cenografia, que se limita a uma escada e uma cadeira, apresenta apenas o absolutamente essencial para a ação. Penso, entretanto, que preencher o espaço com outras informações visuais faria bem ao espetáculo. A trilha sonora e algumas peças do figurino sugerem que a ambientação da história é inspirada no tradicionalismo gaúcho, pois há pilchas e ouvem-se algumas conhecidas canções tradicionalistas.

Nesse sentido, a cenografia poderia investir em alguns elementos encontrados nas habitações, pobres e ricas, do nosso interior; ou, de outra forma, em painéis de pano, por exemplo, que poderiam ser texturizados para representar as cores, as paisagens, os temas que compõem o universo gaudério. Tais elementos enriqueceriam e dariam acabamento à visualidade da encenação.

Confesso que a encenação não me conquistou imediatamente: de início estranhei a timidez de alguns e a excessiva simplicidade para contar a história. Eu esperava ver teatralidade sobre o palco. Com o avançar da narrativa, entretanto, tive algumas surpresas com soluções da encenação que me fizeram tão bem que, agora, lamento não terem sido incorporadas à totalidade do espetáculo. Esses laivos de criatividade cênica pareciam, em contraposição à previsibilidade de outros momentos, pertencer a espetáculos diferentes. Meu conselho é tentar homogeneizar, de alguma forma, as soluções teatrais, oferecendo aos espectadores, desde o início, a possibilidade de serem envolvidos pela atmosfera fantástica proposta pela fábula da Morte que é aprisionada no alto de uma escada.

O fato é que a ingenuidade do trabalho, no mais positivo sentido, me cativou. Ao final do espetáculo, quando o numeroso grupo de jovens veio receber os aplausos capitaneado por Jadson, também um tanto nervoso e feliz, me comovi com a força que a arte tem de unir as pessoas. Neste caso, estamos falando de teatro, mas poderíamos usar como exemplo qualquer outra expressão artística. A arte agregou aquele grupo de jovens com um objetivo teatral que, segundo o pensamento de muitos, não tem nenhuma função prática no mundo. A arte não serve para nada, pode-se alegar. A arte não mata a fome e não dá moradia aos que necessitam. No entanto, ao colocar seres humanos pensando e agindo em direção a um objetivo comum – produzir beleza e reflexão sobre o que é ser humano –, o teatro cumpre uma das mais nobres funções, que é a de nos colocar em relação, de nos aproximar. Todos aqueles jovens viveram e dedicaram muitos momentos de suas vidas em prol desse sentimento de humanidade que, ao final da apresentação de O ferreiro e a morte, me tocou.

Lembro de uma passagem do Hamlet de William Shakespeare, na qual o protagonista, ao se referir a um dos atores que vira interpretar uma cena trágica, se surpreende com o poder que nós artistas temos de criar empatia com uma ficção. Hamlet recorda que o ator em questão se debulhava em sofrimento por uma personagem que, de fato, não existia, era apenas um nome: Hécuba. O ator chorava por Hécuba, dedicava suas lágrimas e todo seu pranto a essa mulher imaginária, menos concreta que qualquer grão de areia. E essa imaginação poderosa do artista, que se coloca empaticamente no lugar de outros e outras, faz do artista de teatro, ainda que talvez um ser sem uma função prática fundamental em nossa sociedade, alguém que, paradoxalmente, exerce a mais bela e mais indispensável função que existe no mundo: olhar para os outros e sofrer e se alegrar com a condição humana. Os jovens de Santa Rosa atuaram para si, para nós e por Hécuba.

Crédito da foto: Giuliano Bueno              
               

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