almAValente
Para
escrever sobre o espetáculo da Cia. Retalhos de Teatro, de Santa Maria/RS, precisei
fazer uma escolha ética entre dois caminhos de escrita: relevar algumas –
segundo meu ponto de vista – inconsistências na linguagem cênica, com o
equivocado argumento de que um trabalho endereçado ao público infantil ou
infanto-juvenil não precisaria ter a atenção crítica que recebem os espetáculos
endereçados ao público adulto; ou abordar almAValente com o respeito e a
maturidade que o longevo grupo de Santa Maria merece – justificado pelos
numerosos prêmios acumulados em festivais, não apenas com este espetáculo, mas
com outros que compõem o repertório da companhia. Minha opção foi pela segunda
forma de ler o trabalho em questão, já que estamos falando de artistas com experiência
suficiente para receber comentários, sejam positivos, sejam questionadores.
Quando
se fala em “dramaturgia”, muito provavelmente a maioria das pessoas entenderá
que se está falando daquela ideia mais disseminada, ou seja, as situações que
se sucedem na estrutura espetacular, que é muitas vezes acompanhada de
sugestões de palavras a serem pronunciadas por atores e atrizes (como os
diálogos, os solilóquios, as narrações, etc.). Um exemplo: Nelson Rodrigues, o
mais famoso dramaturgo brasileiro, em seus textos escritos para serem encenados
(d)escrevia uma trama de acontecimentos a serem vividos por personagens
ficcionais que dariam conta de sua visão de mundo sobre os temas que escolhia abordar.
As rubricas, generosas na dramaturgia rodrigueana, também indicavam tons,
intenções, ações e outras formas de desenhar com maior acuidade o recortado
universo dramático que o autor pernambucano propunha escarafunchar.
Na ideia
de contemporaneidade (não no sentido que por vezes se dá à expressão “teatro
contemporâneo”, que está impregnada de uma espécie de estética da fragmentação
e do real-em-cena), segundo Patrice Pavis afirma no Dicionário da performance e
do teatro contemporâneo (Perspectiva, 2017, p. 67), “o contemporâneo é sempre o
que se recusa do passado, o que se quer, portanto, ultrapassar, o que se deixa
de lado para passar a outra coisa, ainda desconhecida”. Paradoxalmente (ou
não), uma das estratégias do chamado teatro contemporâneo pode ser justamente
tomar como matéria-prima tanto uma forma espetacular recuada no tempo quanto
uma dramaturgia (aqui no sentido literário) pertencente à tradição, para, a partir
e por meio dela, trazer à cena essa “coisa ainda desconhecida”. É aqui que entra
a ideia expandida de dramaturgia, que tem recheado reflexões nas últimas
décadas: que em teatro, dramaturgia é tudo que se vê ou ouve no evento
espetacular. Assim, é possível falar em dramaturgia do movimento, dramaturgia
do ator/da atriz, dramaturgia da luz, dramaturgia do espaço... Entretecem-se
todas essas possibilidades dramatúrgicas no tecido espetacular, fornecendo e
recebendo sentidos mutuamente, sinalizando ou deixando lacunas na/para a
recepção dos espectadores.
almAValente
aparentemente foi concebido como espetáculo para público não adulto; ou, como
dizem alguns, em um movimento de inclusão: para pessoas de todas as idades.
Essa abertura demanda alguns cuidados no vocabulário, nas ações a serem
executadas e na forma de tratar os temas, para que se consiga alcançar a todos
os espectadores com uma complexidade narrativa suficientemente prevista para
que o público em geral possa fruir o espetáculo. Assim, de certa forma se
explica a opção por uma fábula de estrutura bem conhecida do público, a do
grupo de rebeldes que buscam destruir ou retirar o poder de seus tirânicos
detentores. As sagas cinematográficas Star Wars e Jogos Vorazes têm esse mote,
para citar apenas exemplos amplamente conhecidos. A luta do bem contra o mal é
maniqueísta e, por isso mesmo, tão popular. E é partindo dessa premissa que se
constrói o espetáculo em questão.
No
espetáculo aqui analisado, alguns ingredientes são acrescentados à receita da
história que traz as aventuras de três jovens que planejam lutar contra a
governante de um reino (?), sendo o principal deles a busca pela comicidade. Nesse
quesito, muitos investimentos são feitos, principalmente por parte do elenco.
Em uma produção que opta por trabalhar com palco nu, é colocada aos atores, à
iluminação e à trilha sonora a responsabilidade de dar direção e sentido à
história que se desenrola. Para isso, contam com seus corpos-vozes, acrescidos
dos figurinos e adereços que buscam caracterizar as personagens que defendem.
Mas nessa integração entre as dramaturgias, há atritos nem sempre bem
resolvidos no espetáculo. E quando falo de diferentes dramaturgias em um mesmo
espetáculo, estou propondo que as que integram o trabalho do grupo
santa-mariense encontram alguns obstáculos para conversarem entre si de maneira
mais harmônica.
Em
relação às atuações, há a definição de dois tipos de orientação de energia: a
energia do cômico e a energia neutra, que é como as denomino. A energia do
cômico está em primeiríssimo plano, presente em quase todas as atuações, em
maior ou menor intensidade. No grupo de três jovens rebeldes, por exemplo, as duas
garotas são mais neutras, ficando a cargo do rapaz, de ações mais expansivas, a
função de alívio cômico. Essa função também pode ser encontrada, sem maiores
dificuldades, em várias das animações da Disney, nas quais há sempre uma
personagem, que acompanha as andanças do herói/heroína, e desempenha essa
marca, na maioria das vezes, por meio de ações que frequentemente exigem maior
fisicalidade.
Em almAValente, outros dois exemplos dessa energia cômica
são Maximus, uma espécie de guarda-conselheiro de Martírio, a “governante”, e a
própria Martírio. Helquer Paez, que atua como Maximus, conhece os meandros da
atuação cômica popular: a constante triangulação com a plateia; os contínuos
comentários às falas das outras personagens, as quais por vezes repete verbalmente,
e em outras ocasiões comenta com gestos e expressões faciais; o apelo às
referências culturais mais presentes ao universo dos espectadores, mesmo que
isso implique em anacronismo, como por exemplo dançar alguns passos de um funk
carioca; a ironia quase onipresente, com a qual busca impor sua personagem por
meio da crítica às demais personagens, etc. São todas essas técnicas nascidas
da prática, que inegavelmente têm sucesso junto à audiência, mas que podem
fragilizar o espetáculo, que por vezes joga demais para a torcida. Outro
exemplo é Débora Matiuzzi, que atua como Martírio: apostando no melodrama,
exacerba principalmente na voz e nas emoções artificialmente construídas para
extrair humor de sua figura.
Mesmo que eu perceba a intenção de fazer comédia, há graus e
graus dela. As atuações enfáticas de todo o elenco nem sempre são coerentes ou
atraentes dramaticamente (e aqui falo de drama no sentido etimológico de ação) e
afastam um possível envolvimento do público. Falta delicadeza no trabalho com a
gestualidade, que surge muito mais para ilustrar o imediatismo da ação do que
para fornecer outros sentidos possíveis. A exigência que faço não é maior do
que a que a encenação se propôs ao entregar aos espectadores um palco nu. Na
falta de outros elementos, não há outro recurso disponível para acompanhar a
narrativa: por isso ressalto o quão importante seria um cuidado maior com a
atuação como produtora de códigos, no que incluo as marcações.
Os
figurinos cumprem com as funções que lhes foram destinadas: uma pitada de mundo
pós-apocalíptico para os rebeldes, uma sugestão militarizada para Maximus e
Mau. Menos bem resolvidas são as indumentárias de Alegra e, principalmente, de
Martírio. Esta parece um tanto desconfortável em seus saltos altíssimos e na
referência-releitura aos vestidos do século XVIII que porta.
Após
essas considerações, uma finalização, na qual tento justificar minhas
afirmações anteriores. A Cia. Retalhos de Teatro conhece a linguagem do teatro
e suas potencialidades. O que senti falta nesse trabalho em específico foi de
uma dramaturgia melhor integrada à encenação. Ao ler a ficha técnica, descobri
que ambas são assinadas por Julio Cesar Aranda, o que talvez tenha contribuído
para minha sensação de descompasso entre uma e outra. Falei da ideia de
contemporâneo, e esse ponto quero frisar: pareceram repetitivas as soluções
encontradas pela encenação para dar concretude ao universo dramatúrgico, que
homenageia o subgênero aventura. O melodrama era constantemente reprisado para
provocar algum tipo de reação na plateia, e por esse motivo fico imaginando
como seria abordar a mesma dramaturgia de Aranda com uma forma menos convencionada
e menos calcada em reproduções com sabor de déjà vu (o tango com flor na boca,
as lutas que não têm a melhor técnica possível, as entradas e saídas que cruzam
e recruzam o palco em toda sua extensão, a súbita mudança de caráter da vilã,
etc.) que, se poderiam resultar teatralmente interessantes em um espetáculo de
algumas décadas atrás, hoje parecem um tanto ultrapassadas e injustificadamente
reproduzidas.
Os
parâmetros com que se leem trabalhos cênicos são variáveis, conforme o nível de
experiência dos envolvidos. Se sou exigente com a Cia. Retalhos de Teatro é
porque sei das potencialidades já demonstradas em outros espetáculos. Ao
apontar algumas fragilidades em almAValente, destaco também a produção bem
articulada e a vontade de trazer à cena um gênero não tão frequente sobre os
palcos. Essa ousadia é bem-vinda, mas tem suas consequências. Que venham outros
acertos e outras ousadias!
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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