domingo, 9 de dezembro de 2018


almAValente

Marcelo Ádams


Para escrever sobre o espetáculo da Cia. Retalhos de Teatro, de Santa Maria/RS, precisei fazer uma escolha ética entre dois caminhos de escrita: relevar algumas – segundo meu ponto de vista – inconsistências na linguagem cênica, com o equivocado argumento de que um trabalho endereçado ao público infantil ou infanto-juvenil não precisaria ter a atenção crítica que recebem os espetáculos endereçados ao público adulto; ou abordar almAValente com o respeito e a maturidade que o longevo grupo de Santa Maria merece – justificado pelos numerosos prêmios acumulados em festivais, não apenas com este espetáculo, mas com outros que compõem o repertório da companhia. Minha opção foi pela segunda forma de ler o trabalho em questão, já que estamos falando de artistas com experiência suficiente para receber comentários, sejam positivos, sejam questionadores.

Quando se fala em “dramaturgia”, muito provavelmente a maioria das pessoas entenderá que se está falando daquela ideia mais disseminada, ou seja, as situações que se sucedem na estrutura espetacular, que é muitas vezes acompanhada de sugestões de palavras a serem pronunciadas por atores e atrizes (como os diálogos, os solilóquios, as narrações, etc.). Um exemplo: Nelson Rodrigues, o mais famoso dramaturgo brasileiro, em seus textos escritos para serem encenados (d)escrevia uma trama de acontecimentos a serem vividos por personagens ficcionais que dariam conta de sua visão de mundo sobre os temas que escolhia abordar. As rubricas, generosas na dramaturgia rodrigueana, também indicavam tons, intenções, ações e outras formas de desenhar com maior acuidade o recortado universo dramático que o autor pernambucano propunha escarafunchar.
Na ideia de contemporaneidade (não no sentido que por vezes se dá à expressão “teatro contemporâneo”, que está impregnada de uma espécie de estética da fragmentação e do real-em-cena), segundo Patrice Pavis afirma no Dicionário da performance e do teatro contemporâneo (Perspectiva, 2017, p. 67), “o contemporâneo é sempre o que se recusa do passado, o que se quer, portanto, ultrapassar, o que se deixa de lado para passar a outra coisa, ainda desconhecida”. Paradoxalmente (ou não), uma das estratégias do chamado teatro contemporâneo pode ser justamente tomar como matéria-prima tanto uma forma espetacular recuada no tempo quanto uma dramaturgia (aqui no sentido literário) pertencente à tradição, para, a partir e por meio dela, trazer à cena essa “coisa ainda desconhecida”. É aqui que entra a ideia expandida de dramaturgia, que tem recheado reflexões nas últimas décadas: que em teatro, dramaturgia é tudo que se vê ou ouve no evento espetacular. Assim, é possível falar em dramaturgia do movimento, dramaturgia do ator/da atriz, dramaturgia da luz, dramaturgia do espaço... Entretecem-se todas essas possibilidades dramatúrgicas no tecido espetacular, fornecendo e recebendo sentidos mutuamente, sinalizando ou deixando lacunas na/para a recepção dos espectadores.
               
almAValente aparentemente foi concebido como espetáculo para público não adulto; ou, como dizem alguns, em um movimento de inclusão: para pessoas de todas as idades. Essa abertura demanda alguns cuidados no vocabulário, nas ações a serem executadas e na forma de tratar os temas, para que se consiga alcançar a todos os espectadores com uma complexidade narrativa suficientemente prevista para que o público em geral possa fruir o espetáculo. Assim, de certa forma se explica a opção por uma fábula de estrutura bem conhecida do público, a do grupo de rebeldes que buscam destruir ou retirar o poder de seus tirânicos detentores. As sagas cinematográficas Star Wars e Jogos Vorazes têm esse mote, para citar apenas exemplos amplamente conhecidos. A luta do bem contra o mal é maniqueísta e, por isso mesmo, tão popular. E é partindo dessa premissa que se constrói o espetáculo em questão.
                 
No espetáculo aqui analisado, alguns ingredientes são acrescentados à receita da história que traz as aventuras de três jovens que planejam lutar contra a governante de um reino (?), sendo o principal deles a busca pela comicidade. Nesse quesito, muitos investimentos são feitos, principalmente por parte do elenco. Em uma produção que opta por trabalhar com palco nu, é colocada aos atores, à iluminação e à trilha sonora a responsabilidade de dar direção e sentido à história que se desenrola. Para isso, contam com seus corpos-vozes, acrescidos dos figurinos e adereços que buscam caracterizar as personagens que defendem. Mas nessa integração entre as dramaturgias, há atritos nem sempre bem resolvidos no espetáculo. E quando falo de diferentes dramaturgias em um mesmo espetáculo, estou propondo que as que integram o trabalho do grupo santa-mariense encontram alguns obstáculos para conversarem entre si de maneira mais harmônica.
                 
Em relação às atuações, há a definição de dois tipos de orientação de energia: a energia do cômico e a energia neutra, que é como as denomino. A energia do cômico está em primeiríssimo plano, presente em quase todas as atuações, em maior ou menor intensidade. No grupo de três jovens rebeldes, por exemplo, as duas garotas são mais neutras, ficando a cargo do rapaz, de ações mais expansivas, a função de alívio cômico. Essa função também pode ser encontrada, sem maiores dificuldades, em várias das animações da Disney, nas quais há sempre uma personagem, que acompanha as andanças do herói/heroína, e desempenha essa marca, na maioria das vezes, por meio de ações que frequentemente exigem maior fisicalidade. 

Em almAValente, outros dois exemplos dessa energia cômica são Maximus, uma espécie de guarda-conselheiro de Martírio, a “governante”, e a própria Martírio. Helquer Paez, que atua como Maximus, conhece os meandros da atuação cômica popular: a constante triangulação com a plateia; os contínuos comentários às falas das outras personagens, as quais por vezes repete verbalmente, e em outras ocasiões comenta com gestos e expressões faciais; o apelo às referências culturais mais presentes ao universo dos espectadores, mesmo que isso implique em anacronismo, como por exemplo dançar alguns passos de um funk carioca; a ironia quase onipresente, com a qual busca impor sua personagem por meio da crítica às demais personagens, etc. São todas essas técnicas nascidas da prática, que inegavelmente têm sucesso junto à audiência, mas que podem fragilizar o espetáculo, que por vezes joga demais para a torcida. Outro exemplo é Débora Matiuzzi, que atua como Martírio: apostando no melodrama, exacerba principalmente na voz e nas emoções artificialmente construídas para extrair humor de sua figura. 

Mesmo que eu perceba a intenção de fazer comédia, há graus e graus dela. As atuações enfáticas de todo o elenco nem sempre são coerentes ou atraentes dramaticamente (e aqui falo de drama no sentido etimológico de ação) e afastam um possível envolvimento do público. Falta delicadeza no trabalho com a gestualidade, que surge muito mais para ilustrar o imediatismo da ação do que para fornecer outros sentidos possíveis. A exigência que faço não é maior do que a que a encenação se propôs ao entregar aos espectadores um palco nu. Na falta de outros elementos, não há outro recurso disponível para acompanhar a narrativa: por isso ressalto o quão importante seria um cuidado maior com a atuação como produtora de códigos, no que incluo as marcações.
                 
Os figurinos cumprem com as funções que lhes foram destinadas: uma pitada de mundo pós-apocalíptico para os rebeldes, uma sugestão militarizada para Maximus e Mau. Menos bem resolvidas são as indumentárias de Alegra e, principalmente, de Martírio. Esta parece um tanto desconfortável em seus saltos altíssimos e na referência-releitura aos vestidos do século XVIII que porta.
                 
Após essas considerações, uma finalização, na qual tento justificar minhas afirmações anteriores. A Cia. Retalhos de Teatro conhece a linguagem do teatro e suas potencialidades. O que senti falta nesse trabalho em específico foi de uma dramaturgia melhor integrada à encenação. Ao ler a ficha técnica, descobri que ambas são assinadas por Julio Cesar Aranda, o que talvez tenha contribuído para minha sensação de descompasso entre uma e outra. Falei da ideia de contemporâneo, e esse ponto quero frisar: pareceram repetitivas as soluções encontradas pela encenação para dar concretude ao universo dramatúrgico, que homenageia o subgênero aventura. O melodrama era constantemente reprisado para provocar algum tipo de reação na plateia, e por esse motivo fico imaginando como seria abordar a mesma dramaturgia de Aranda com uma forma menos convencionada e menos calcada em reproduções com sabor de déjà vu (o tango com flor na boca, as lutas que não têm a melhor técnica possível, as entradas e saídas que cruzam e recruzam o palco em toda sua extensão, a súbita mudança de caráter da vilã, etc.) que, se poderiam resultar teatralmente interessantes em um espetáculo de algumas décadas atrás, hoje parecem um tanto ultrapassadas e injustificadamente reproduzidas.
                 
Os parâmetros com que se leem trabalhos cênicos são variáveis, conforme o nível de experiência dos envolvidos. Se sou exigente com a Cia. Retalhos de Teatro é porque sei das potencialidades já demonstradas em outros espetáculos. Ao apontar algumas fragilidades em almAValente, destaco também a produção bem articulada e a vontade de trazer à cena um gênero não tão frequente sobre os palcos. Essa ousadia é bem-vinda, mas tem suas consequências. Que venham outros acertos e outras ousadias!

Crédito da foto: Giuliano Bueno
               

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