segunda-feira, 10 de dezembro de 2018


Nômades no lugar certo

Marcelo Ádams


Demorei para encontrar, nas divulgações do Coletivo Nômade que busquei na internet, referências àquilo que, nos primeiros minutos do espetáculo Junho, me pareceu tão explícito: a citação à história da família Frank, alemães de origem judaica. Anne, uma das filhas, ficou mundialmente conhecida por ter escrito um diário que se tornaria símbolo da resistência e da força de vontade em sobreviver em condições desesperadoras: O diário de Anne Frank, publicado por seu pai Otto – que sobreviveu ao campo de extermínio de Auschwitz – em 1947. Os Frank, se escondendo dos nazistas, viveram mais de dois anos, entre 1942 e 1944, em um sótão em Amsterdã, Holanda, até serem capturados e enviados a campos de concentração e de extermínio. Anne e sua irmã Margot teriam morrido de tifo em fevereiro de 1945, no campo de concentração de Bergen-Belsen, na Alemanha.

Algumas indicações são dadas pelo espetáculo para associar a história dos Frank ficcionais aos Frank reais: o nome de família é o mais evidente, mas também há referências ao fato de viverem em um castelo (em substituição à espécie de sótão, na realidade um anexo secreto, no qual viveu a família judia), de serem perseguidos por terem um grande apreço pelos livros (o casal Edith e Otto Frank sempre incentivou suas filhas à leitura) e, mais sutil, o fato do protagonista se chamar Junho (Anne Frank nasceu no dia 12 de junho de 1929).

As histórias de perseguição ocorridas no período nazista são exemplares para tratar do acossamento de “minorias” (que às vezes são, de fato, maiorias), ou para tematizar a intolerância nos mais variados modos, ou para denunciar o perigo do nacionalismo exacerbado. Por outro lado, quando se fala criticamente da ideologia nazista, pode-se contrapor com a necessidade de respeitar e valorizar as diferenças. Um espetáculo como Junho, que constrói sua narrativa com uma abordagem estética que é frequente no teatro para a infância, encontrou nas referências a Anne Frank um motivo potente: se não há um desdobramento tão evidente da história que inspirou a montagem, está lá, sem dúvida, a semente humanista encontrada na triste fábula dos Frank originais.

Fiquei um pouco confuso com a história de sobreposição de dimensões: o menino Junho encontra sua mãe com a mesma idade que ele tem atualmente. Talvez esse jogo temporal não seja o mais adequado para narrar a fábula com maior segurança e garantia de que será efetivamente compreendida. Por outro lado, não foi por essa dificuldade de apreender a narrativa que deixei de apreciar o espetáculo, o que me relaxou: se as crianças não entenderem exatamente a proposta, têm ao menos a visualidade e os demais ramos da história para sustentarem seu interesse. Entretanto, me sinto no dever de apontar que, nesse quesito, a construção dramatúrgica poderia facilitar um pouco mais a vida de nós espectadores.

Por falar em visualidade, esse é um dos méritos do espetáculo: cuidado e harmonia nas escolhas resultaram em um figurino muito bonito e coerente com a cenografia, que é funcional e ao mesmo tempo embeleza a cena. Os figurinos (no que incluo cabelos e maquiagem), por meio de cores e texturas que se complementam e formam uma concepção sólida, provocam a impressão de um trabalho bem direcionado às intenções estéticas da encenação. As referências visuais escolhidas são eficazes. 

As atuações são vivas, e destaco Roger Santos com seu vilão Antenor, em um trabalho cênico maduro e que visivelmente é prazeroso para seu responsável. Um pequeno senão: quando atrizes optam por “representar” crianças de uma forma um tanto afetada, com aquele jeitinho de falar mais próximo do clichê enfático. Isso não acontece todo o tempo, mas poderia ser melhor resolvido. 
  
Thiago Silva, responsável pela encenação e pela dramaturgia, faz boas escolhas, especialmente pela comunicabilidade que apresentam, investindo na comicidade em vários momentos, por meio de movimentações dinâmicas e que reproduzem um imaginário de ações e comportamentos bastante enraizados em nossas memórias: os vilões de atitudes cômicas, o rapto de uma personagem, a dupla de meninas de características comportamentais contrastantes entre elas, o tio maluquinho e divertido, o “livro mágico”, etc. Se não há, nesse sentido, originalidade, há, sobretudo, a possibilidade de identificação da plateia com formas já testadas e, em Junho, na maioria das vezes bem sucedidas nas reproduções.

Um espetáculo direcionado prioritariamente ao público infantil que se propõe a entregar um produto bem acabado, como Junho, é um bom indício de compromisso com a visão do teatro como arte. O Coletivo Nômade fala por suas escolhas cênicas, e nos diz que podemos confiar: o teatro para crianças tem mais um grupo de artistas que cuidam bem da formação de novos públicos e da manutenção dos que cultivamos ao longo dos anos em nosso Rio Grande do Sul.


Crédito da foto: Giuliano Bueno
               
               
                               

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