Nômades no lugar certo
Marcelo Ádams
Algumas indicações são dadas pelo espetáculo para associar a
história dos Frank ficcionais aos Frank reais: o nome de família é o mais
evidente, mas também há referências ao fato de viverem em um castelo (em
substituição à espécie de sótão, na realidade um anexo secreto, no qual viveu a
família judia), de serem perseguidos por terem um grande apreço pelos livros (o
casal Edith e Otto Frank sempre incentivou suas filhas à leitura) e, mais
sutil, o fato do protagonista se chamar Junho (Anne Frank nasceu no dia 12 de
junho de 1929).
As histórias de perseguição ocorridas no período nazista são
exemplares para tratar do acossamento de “minorias” (que às vezes são, de fato,
maiorias), ou para tematizar a intolerância nos mais variados modos, ou para
denunciar o perigo do nacionalismo exacerbado. Por outro lado, quando se fala
criticamente da ideologia nazista, pode-se contrapor com a necessidade de
respeitar e valorizar as diferenças. Um espetáculo como Junho, que constrói sua
narrativa com uma abordagem estética que é frequente no teatro para a infância,
encontrou nas referências a Anne Frank um motivo potente: se não há um
desdobramento tão evidente da história que inspirou a montagem, está lá, sem
dúvida, a semente humanista encontrada na triste fábula dos Frank originais.
Fiquei um pouco confuso com a história de sobreposição de
dimensões: o menino Junho encontra sua mãe com a mesma idade que ele tem
atualmente. Talvez esse jogo temporal não seja o mais adequado para narrar a
fábula com maior segurança e garantia de que será efetivamente compreendida.
Por outro lado, não foi por essa dificuldade de apreender a narrativa que
deixei de apreciar o espetáculo, o que me relaxou: se as crianças não
entenderem exatamente a proposta, têm ao menos a visualidade e os demais ramos
da história para sustentarem seu interesse. Entretanto, me sinto no dever de
apontar que, nesse quesito, a construção dramatúrgica poderia facilitar um
pouco mais a vida de nós espectadores.
Por falar em visualidade, esse é um dos méritos do
espetáculo: cuidado e harmonia nas escolhas resultaram em um figurino muito
bonito e coerente com a cenografia, que é funcional e ao mesmo tempo embeleza a
cena. Os figurinos (no que incluo cabelos e maquiagem), por meio de cores e
texturas que se complementam e formam uma concepção sólida, provocam a
impressão de um trabalho bem direcionado às intenções estéticas da encenação.
As referências visuais escolhidas são eficazes.
As atuações são vivas, e destaco Roger Santos com seu vilão
Antenor, em um trabalho cênico maduro e que visivelmente é prazeroso para seu
responsável. Um pequeno senão: quando atrizes optam por “representar” crianças
de uma forma um tanto afetada, com aquele jeitinho de falar mais próximo do
clichê enfático. Isso não acontece todo o tempo, mas poderia ser melhor
resolvido.
Thiago Silva, responsável pela encenação e pela dramaturgia,
faz boas escolhas, especialmente pela comunicabilidade que apresentam,
investindo na comicidade em vários momentos, por meio de movimentações
dinâmicas e que reproduzem um imaginário de ações e comportamentos bastante enraizados
em nossas memórias: os vilões de atitudes cômicas, o rapto de uma personagem, a
dupla de meninas de características comportamentais contrastantes entre elas, o
tio maluquinho e divertido, o “livro mágico”, etc. Se não há, nesse sentido,
originalidade, há, sobretudo, a possibilidade de identificação da plateia com
formas já testadas e, em Junho, na maioria das vezes bem sucedidas nas
reproduções.
Um espetáculo direcionado prioritariamente ao público
infantil que se propõe a entregar um produto bem acabado, como Junho, é um bom
indício de compromisso com a visão do teatro como arte. O Coletivo Nômade fala
por suas escolhas cênicas, e nos diz que podemos confiar: o teatro para
crianças tem mais um grupo de artistas que cuidam bem da formação de novos
públicos e da manutenção dos que cultivamos ao longo dos anos em nosso Rio
Grande do Sul.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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