segunda-feira, 10 de dezembro de 2018


Büchner Alegórico e Utópico

Pedro Delgado

 
 
O grupo Coadjuvantes, da cidade de Charqueadas, apresentou na noite de 8 de dezembro, no palco do Teatro Bruno Kiefer, a peça Leonce e Lena, de Georg Büchner. A apresentação do espetáculo integra a programação do 3º Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul. 

Numa releitura da obra do dramaturgo alemão, o encenador Eduardo Arruda se utiliza de referências da cultura popular brasileira para formular a récita de um espetáculo sensível, alegórico e fantasioso, contando uma história de amor em que dois jovens guiados pelo destino se apaixonam sem sequer revelarem suas identidades.

A obra de Arruda apresenta elementos que lembram estéticas teatrais e soluções cênicas utilizadas nas encenações dos grupos Ói Nóis Aqui Traveiz, de Porto Alegre, e Galpão, da cidade de Belo Horizonte. Ambos fazem parte da formação do diretor. Desde o início da peça, quando o elenco entra pelo meio da plateia, tocando instrumentos musicais e cantando, fica claro que a encenação está fortemente embasada nas estéticas desses dois referenciais.

A teatralidade apresentada pelo elenco do Coadjuvante, apesar de a peça ser divulgada como um conto de fadas, tem a pretensão de agradar a todas as faixas etárias e atinge seu objetivo. Conforme experiência que vivenciei ao assistir à peça em meio a uma plateia diversificada, inclusive com a presença de algumas crianças apesar de ser apresentada às 21h, pude observar a vibração da mesma com os jogos das cenas que por vezes eram interrompidas por aplausos.

Leonce e Lena é uma releitura do clássico Romeu e Julieta, de William Shakespeare, que na montagem do grupo charqueadense ganhou uma roupagem bem brasileira. A influência da cultura popular nordestina, do Carnaval e do teatro de rua está presente em todas as imagens concebidas para as poéticas das cenas. Aqui quero chamar a atenção para um detalhe: talvez porque o diretor seja fortemente inspirado pelas estéticas do teatro de rua, fica evidente a despreocupação com os recursos que as novas tecnologias de iluminação oferecem para a ampliação poética das imagens, assim como para reforçar a dramaturgia e as mudança de cena. Sugiro que o grupo avalie a potência que a luz pode proporcionar para ampliar o tom romântico da história de amor entre os protagonistas e a poesia das imagens construídas.  

Contudo, o espetáculo é bem pensado, e os figurinos coloridos e bem-acabados contribuem para reforçar o aspecto poético e romântico proposto pela direção, ainda que os corpos que os vestem careçam de técnicas que ajudem a potencializar as possibilidades imagéticas e dramáticas que os mesmos oferecem. A fragilidade da interpretação do elenco enfraquece também a dramaturgia dos personagens, com isso os figurinos correm o risco de parecerem muito mais uma decoração dos corpos que um signo a ser explorado. Pablo Bertol, por exemplo, constrói um Leonce que está mais presente no figurino que na interpretação. Seu texto está bem decorado, no entanto é dito de forma previsível e superficial.  Seu corpo não vibra e não segura o jogo exigido pelos encontros dramáticos das cenas em que aparece. Dessa forma, o Leonce que vemos em cena é frágil e quase opaco, não fosse pelo colorido do figurino que reforça sua presença. Nina Alves, por sua vez, apresenta uma Lena um pouco mais vibrante, que se torna mais interessante quando sua interpretação escapa à fórmula alegórica e farsesca de dizer um texto. Yannikson e Rita Almeida destacam-se dos demais pela dinâmica e humor que impõem a seus personagens. Marina Cabral de Almeida constrói uma bela figura para a sua escrivã real. Eduardo Arruda e seu rei ficam mais na forma simbólica do poder que na interpretação. Acredito que essa fragilidade fique mais evidente em razão do tom filosófico demais do próprio texto e sua linguagem de difícil entendimento dramatúrgico tanto para quem o representa quanto para quem o assiste.

Diante disso, quero chamar a atenção para o que, na minha opinião é o ponto vulnerável da direção de Arruda: trata-se de como ele insere os elementos simbólicos nas cenas. Os elementos desfilam pelo palco na maioria das vezes sem nenhum aprofundamento, tornando-se muitas vezes desnecessários para o desenvolvimento e a continuidade da dramaturgia a que se propõem. É como se o diretor quisesse dizer: “Olha o que eu sei fazer e não olha o que a cena me pede para fazer”. Os símbolos entram e saem de cena de maneira superficial, e há momentos em que a gente se pergunta: “Oquei, e agora qual será o próximo?”. Esse entra-e-sai de informações e símbolos estéticos não é desenvolvido. Com isso, enfraquece-se o jogo dramático bem como a poesia que poderia resultar a partir de uma imagem melhor explorada. Às vezes tem-se a sensação de que não existe um aprofundamento na proposta da encenação, tornando a peça frágil e periférica.

Cabe registrar que o espetáculo é bonito e tem momentos muito bem executados, principalmente quando o elenco canta ao vivo. Musicalmente existe afinação nas vozes e um arranjo instrumental de excelentes escolha e execução. A maquilagem também merece destaque. Uma máscara branca reconstrói uma imagem farsesca nos rostos dos intérpretes sem prejudicar a expressividade facial, apesar da economia de expressões por parte de alguns atores. A cenografia também merece destaque enquanto significado que pode se reciclar facilmente. Trata-se de uma estrutura da madeira criada para facilitar na concepção das imagens. A ideia é louvável e chega a ser bem aproveitada em vários momentos. No entanto, poderia propiciar melhor utilização se não fosse por sua estrutura débil. A direção propõe a construção de algumas imagens que poderiam contribuir bastante para a estética da peça, entretanto os atores não se sentem seguros ao subir na estrutura, e seus corpos travam a fruição do movimento, impedindo que algo potente se conclua em sua totalidade.

Mesmo assim, a peça é boa de ver e muitas vezes provoca sensações de prazer que vão além da fragilidade já descrita. Parabéns ao grupo Coadjuvante e vida longa a Leonce e Lena. Sei que é o início de um namoro, e que eles têm muito tempo pela frente para se apaixonarem e viverem um grande amor.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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