Büchner Alegórico e Utópico
Pedro Delgado
O grupo Coadjuvantes, da cidade de Charqueadas, apresentou na
noite de 8 de dezembro, no palco do Teatro Bruno Kiefer, a peça Leonce e Lena,
de Georg Büchner. A apresentação do espetáculo integra a programação do 3º
Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul.
Numa releitura da obra do dramaturgo alemão, o encenador Eduardo
Arruda se utiliza de referências da cultura popular brasileira para formular a récita
de um espetáculo sensível, alegórico e fantasioso, contando uma história de
amor em que dois jovens guiados pelo destino se apaixonam sem sequer revelarem
suas identidades.
A obra de Arruda apresenta elementos que lembram estéticas
teatrais e soluções cênicas utilizadas nas encenações dos grupos Ói Nóis Aqui Traveiz,
de Porto Alegre, e Galpão, da cidade de Belo Horizonte. Ambos fazem parte da
formação do diretor. Desde o início da peça, quando o elenco entra pelo meio da
plateia, tocando instrumentos musicais e cantando, fica claro que a encenação
está fortemente embasada nas estéticas desses dois referenciais.
A teatralidade apresentada pelo elenco do Coadjuvante,
apesar de a peça ser divulgada como um conto de fadas, tem a pretensão de
agradar a todas as faixas etárias e atinge seu objetivo. Conforme experiência
que vivenciei ao assistir à peça em meio a uma plateia diversificada, inclusive
com a presença de algumas crianças apesar de ser apresentada às 21h, pude
observar a vibração da mesma com os jogos das cenas que por vezes eram
interrompidas por aplausos.
Leonce e Lena é uma releitura do clássico Romeu e Julieta, de
William Shakespeare, que na montagem do grupo charqueadense ganhou uma roupagem
bem brasileira. A influência da cultura popular nordestina, do Carnaval e do
teatro de rua está presente em todas as imagens concebidas para as poéticas das
cenas. Aqui quero chamar a atenção para um detalhe: talvez porque o diretor seja
fortemente inspirado pelas estéticas do teatro de rua, fica evidente a despreocupação
com os recursos que as novas tecnologias de iluminação oferecem para a
ampliação poética das imagens, assim como para reforçar a dramaturgia e as
mudança de cena. Sugiro que o grupo avalie a potência que a luz pode
proporcionar para ampliar o tom romântico da história de amor entre os
protagonistas e a poesia das imagens construídas.
Contudo, o espetáculo é bem pensado, e os figurinos coloridos
e bem-acabados contribuem para reforçar o aspecto poético e romântico proposto
pela direção, ainda que os corpos que os vestem careçam de técnicas que ajudem a
potencializar as possibilidades imagéticas e dramáticas que os mesmos oferecem.
A fragilidade da interpretação do elenco enfraquece também a dramaturgia dos
personagens, com isso os figurinos correm o risco de parecerem muito mais uma
decoração dos corpos que um signo a ser explorado. Pablo Bertol, por exemplo,
constrói um Leonce que está mais presente no figurino que na interpretação. Seu
texto está bem decorado, no entanto é dito de forma previsível e
superficial. Seu corpo não vibra e não
segura o jogo exigido pelos encontros dramáticos das cenas em que aparece.
Dessa forma, o Leonce que vemos em cena é frágil e quase opaco, não fosse pelo
colorido do figurino que reforça sua presença. Nina Alves, por sua vez,
apresenta uma Lena um pouco mais vibrante, que se torna mais interessante
quando sua interpretação escapa à fórmula alegórica e farsesca de dizer um
texto. Yannikson e Rita Almeida destacam-se dos demais pela dinâmica e humor
que impõem a seus personagens. Marina Cabral de Almeida constrói uma bela
figura para a sua escrivã real. Eduardo Arruda e seu rei ficam mais na forma
simbólica do poder que na interpretação. Acredito que essa fragilidade fique
mais evidente em razão do tom filosófico demais do próprio texto e sua
linguagem de difícil entendimento dramatúrgico tanto para quem o representa
quanto para quem o assiste.
Diante disso, quero chamar a atenção para o que, na minha
opinião é o ponto vulnerável da direção de Arruda: trata-se de como ele insere
os elementos simbólicos nas cenas. Os elementos desfilam pelo palco na maioria
das vezes sem nenhum aprofundamento, tornando-se muitas vezes desnecessários
para o desenvolvimento e a continuidade da dramaturgia a que se propõem. É como
se o diretor quisesse dizer: “Olha o que eu sei fazer e não olha o que a cena
me pede para fazer”. Os símbolos entram e saem de cena de maneira superficial,
e há momentos em que a gente se pergunta: “Oquei, e agora qual será o próximo?”.
Esse entra-e-sai de informações e símbolos estéticos não é desenvolvido. Com
isso, enfraquece-se o jogo dramático bem como a poesia que poderia resultar a
partir de uma imagem melhor explorada. Às vezes tem-se a sensação de que não
existe um aprofundamento na proposta da encenação, tornando a peça frágil e
periférica.
Cabe registrar que o espetáculo é bonito e tem momentos
muito bem executados, principalmente quando o elenco canta ao vivo.
Musicalmente existe afinação nas vozes e um arranjo instrumental de excelentes
escolha e execução. A maquilagem também merece destaque. Uma máscara branca
reconstrói uma imagem farsesca nos rostos dos intérpretes sem prejudicar a
expressividade facial, apesar da economia de expressões por parte de alguns
atores. A cenografia também merece destaque enquanto significado que pode se reciclar
facilmente. Trata-se de uma estrutura da madeira criada para facilitar na
concepção das imagens. A ideia é louvável e chega a ser bem aproveitada em
vários momentos. No entanto, poderia propiciar melhor utilização se não fosse
por sua estrutura débil. A direção propõe a construção de algumas imagens que
poderiam contribuir bastante para a estética da peça, entretanto os atores não
se sentem seguros ao subir na estrutura, e seus corpos travam a fruição do
movimento, impedindo que algo potente se conclua em sua totalidade.
Mesmo assim, a peça é boa de ver e muitas vezes provoca
sensações de prazer que vão além da fragilidade já descrita. Parabéns ao grupo
Coadjuvante e vida longa a Leonce e Lena. Sei que é o início de um namoro, e que
eles têm muito tempo pela frente para se apaixonarem e viverem um grande amor.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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