domingo, 9 de dezembro de 2018



A atualidade de Büchner

Camilo de Lélis
 


Georg Büchner escreveu a comédia Leonce e Lena para uma competição, em 1836, mas a peça foi recusada porque estava fora do prazo de inscrição, e nem sequer foi lida pela comissão julgadora. A peça só foi estrear quase 60 anos depois, em 1895, numa apresentação ao ar livre, em Munique. Teria a peça Leonce e Lena uma vocação para o teatro de rua? Büchner era médico, doutor em filosofia e, devido às suas ideias de cunho humanista, teve de fugir da Alemanha. Morreu aos 23 anos, numa epidemia de tifo, que, como médico, estava tentando tratar. Por ter morrido muito jovem, Georg Büchner deixou poucas obras para a posteridade. Uma novela – Lenz – , duas tragédias – A Morte de Danton, sobre a revolução francesa, e Woyzeck (inacabada). Sua única comédia, Leonce e Lena, é incluída  entre as comédias mais importantes da língua alemã.

Embora considerada uma comédia, Leonce e Lena se aproxima mais de uma farsa que aborda problemas sociais, políticos e filosóficos, deixando claro que o autor tinha ideais  anarquistas e criticava o domínio do Estado sobre  as escolhas  individuais. Büchner satirizava nos diálogos da peça a ideia de que o trabalho seja uma alegria divina, considerando-o um tédio e um desgaste inútil das energias vitais. Ele antecipava assim, em muitos anos, os primeiros pensadores que se contrapõem à exploração capitalista do trabalho humano.

O enredo da peça trata de Leonce, um príncipe que viaja com seu servo Valério para fugir de um casamento, arranjado por seu pai, com uma noiva que ele nunca viu. Lena é a noiva prometida que, por sua vez, também foge com sua ama para evitar esse casamento forçado. Na fuga os jovens se encontram por acaso e se apaixonam à primeira vista. O destino mostrou que, por incrível que pudesse parecer, Leonce e Lena eram feitos um para o outro, como Romeu e Julieta, porém com mais sorte que o casal de Verona, pois poderiam, eles sim, serem felizes para sempre. Aliás, em muitos momentos da dramaturgia de Leonce e Lena, vê-se uma clara alusão paródica e satírica a Romeu e Julieta, de William Shakespeare.

A cena final da comédia, em que, diante da ausência do casal, o casamento seria realizado por “avatares” – dois bonecos articulados –, demonstra sem sombra de dúvidas a genial prefiguração de Georg Büchner para os dias atuais, quando a manipulação do destino dos jovens, em suas escolhas, não se dá pelo poder das famílias, como antigamente, mas continua existindo, numa sociedade de aparências, em que os indivíduos prestam contas de suas escolhas perante a vitrina coletiva das redes sociais.

O espetáculo Leonce e Lena, do coletivo Coadjuvantes, foi apresentado ontem no FESTE, no Teatro Bruno Kiefer, e teve boa receptividade por parte do público, que se divertiu com as performances dos atores. O elenco do Coadjuvantes apareceu em cena de forma equilibrada nas atuações, com ótimos desempenhos físico e vocal. Cada ator e atriz se sobressai na sua parte e, com isso, contribui na soma da totalidade do espetáculo. A maquiagem e o figurino merecem destaque pela beleza que remete à poética circense. A cenografia se restringe a biombos com desenhos verticais no tecido ao fundo e por um praticável que se transforma em vários objetos, segundo a necessidade da cena apresentada, traduzindo imaginariamente carruagem, cadeiras, trono e  até precipícios. Cenário necessário e suficiente para a narrativa, favorecendo, assim, o grupo apresentar-se em palcos de tamanhos diversos e até ao ar livre, na forma de teatro de rua.

Quanto à concepção, nota-se a influência explícita do encenador Gabriel Villela na atmosfera de melodrama circense da encenação, na interpretação dos atores, na temática barroca dos figurinos e na escolha das canções folclóricas do cancioneiro popular brasileiro. Trata-se de uma boa influência, sem dúvida, embora eu sugira que o grupo, nos próximos trabalhos, procure se afastar do mestre mineiro para presentear os espectadores com outras influências e, principalmente, com  obras de sua própria concepção artística. Originalidade e criatividade, numa assinatura própria, certamente levarão o Coadjuvantes a um futuro de sucessos repetidos. Evoé!

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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