A atualidade de Büchner
Camilo de Lélis
Georg Büchner escreveu a comédia Leonce e Lena para uma
competição, em 1836, mas a peça foi recusada porque estava fora do prazo de
inscrição, e nem sequer foi lida pela comissão julgadora. A peça só foi estrear
quase 60 anos depois, em 1895, numa apresentação ao ar livre, em Munique. Teria
a peça Leonce e Lena uma vocação para o teatro de rua? Büchner era médico,
doutor em filosofia e, devido às suas ideias de cunho humanista, teve de fugir
da Alemanha. Morreu aos 23 anos, numa epidemia de tifo, que, como médico,
estava tentando tratar. Por ter morrido muito jovem, Georg Büchner deixou
poucas obras para a posteridade. Uma novela – Lenz – , duas tragédias – A
Morte de Danton, sobre a revolução francesa, e Woyzeck (inacabada). Sua única
comédia, Leonce e Lena, é incluída entre as comédias mais importantes da
língua alemã.
Embora considerada uma comédia, Leonce e Lena se aproxima
mais de uma farsa que aborda problemas sociais, políticos e filosóficos,
deixando claro que o autor tinha ideais anarquistas e criticava o domínio
do Estado sobre as escolhas individuais. Büchner satirizava nos
diálogos da peça a ideia de que o trabalho seja uma alegria divina,
considerando-o um tédio e um desgaste inútil das energias vitais. Ele
antecipava assim, em muitos anos, os primeiros pensadores que se contrapõem à
exploração capitalista do trabalho humano.
O enredo da peça trata de Leonce, um príncipe que viaja com
seu servo Valério para fugir de um casamento, arranjado por seu pai, com uma
noiva que ele nunca viu. Lena é a noiva prometida que, por sua vez, também foge
com sua ama para evitar esse casamento forçado. Na fuga os jovens se encontram
por acaso e se apaixonam à primeira vista. O destino mostrou que, por incrível
que pudesse parecer, Leonce e Lena eram feitos um para o outro, como Romeu e
Julieta, porém com mais sorte que o casal de Verona, pois poderiam, eles sim,
serem felizes para sempre. Aliás, em muitos momentos da dramaturgia de Leonce e
Lena, vê-se uma clara alusão paródica e satírica a Romeu e Julieta, de William
Shakespeare.
A cena final da comédia, em que, diante da ausência do
casal, o casamento seria realizado por “avatares” – dois bonecos articulados –,
demonstra sem sombra de dúvidas a genial prefiguração de Georg Büchner para os
dias atuais, quando a manipulação do destino dos jovens, em suas escolhas, não
se dá pelo poder das famílias, como antigamente, mas continua existindo, numa
sociedade de aparências, em que os indivíduos prestam contas de suas
escolhas perante a vitrina coletiva das redes sociais.
O espetáculo Leonce e Lena, do coletivo Coadjuvantes, foi
apresentado ontem no FESTE, no Teatro Bruno Kiefer, e teve boa receptividade
por parte do público, que se divertiu com as performances dos atores. O elenco
do Coadjuvantes apareceu em cena de forma equilibrada nas atuações, com ótimos
desempenhos físico e vocal. Cada ator e atriz se sobressai na sua parte e, com
isso, contribui na soma da totalidade do espetáculo. A maquiagem e o figurino
merecem destaque pela beleza que remete à poética circense. A cenografia se
restringe a biombos com desenhos verticais no tecido ao fundo e por um
praticável que se transforma em vários objetos, segundo a necessidade da cena
apresentada, traduzindo imaginariamente carruagem, cadeiras, trono e até
precipícios. Cenário necessário e suficiente para a narrativa, favorecendo,
assim, o grupo apresentar-se em palcos de tamanhos diversos e até ao ar livre,
na forma de teatro de rua.
Quanto à concepção, nota-se a influência explícita do
encenador Gabriel Villela na atmosfera de melodrama circense da encenação, na
interpretação dos atores, na temática barroca dos figurinos e na escolha das
canções folclóricas do cancioneiro popular brasileiro. Trata-se de uma boa
influência, sem dúvida, embora eu sugira que o grupo, nos próximos trabalhos,
procure se afastar do mestre mineiro para presentear os espectadores com outras
influências e, principalmente, com obras de sua própria concepção
artística. Originalidade e criatividade, numa assinatura própria, certamente
levarão o Coadjuvantes a um futuro de sucessos repetidos. Evoé!
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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