Cartão Postal em Cinco Partes
Pedro Delgado
O grupo Coletivo Meiaoito, da cidade de Pelotas, apresentou
na noite de ontem a peça Cartão Postal, com direção de Lucas Galho. A
apresentação foi no Teatro Bruno Kiefer e faz parte da programação do 3° Festival
de Teatro do Estado do Rio Grande do Sul (FESTE).
O grupo recria a obra Os Estonianos, da brasiliense Julia Spadaccini, para expor a crise existencial de cinco personagens que se movem e se refazem dentro de uma estrutura cenográfica que remete a um cartão postal. Desde o momento em que o público entra no teatro, com os personagens já em cena, percebe-se uma combinação de elementos da cena teatral contemporânea numa dramaturgia que traz à tona a fragilidade das relações afetivas dos personagens vividos por Lucas Galho, Alice Buchweitz, Brenda Seneme, Gustavo Brocker e Lizi Fonseca. Lucas Galho, diretor da peça, produz juntamente com seu elenco uma dinâmica interessante que, mesmo quando os intérpretes estão fora do espaço dramático, isso é, fora do espaço onde a estória é narrada, permanecem em cena e continuam interagindo com os personagens que estão no espaço dramático. Acredito que essa dinâmica faz com que o espetáculo se torne interessante e ao mesmo tempo intrigante aos olhos do público - aos meus com certeza sim. Esse é um dos principais elementos das estéticas teatrais contemporâneas que, desde o início da peça, está dado e bem executado. Parabéns pela escolha do formato e pela execução precisa!
O desenrolar da peça acontece sempre nesses dois espaços: o dramático, que é definido por uma estrutura vazada que desenha uma espécie de cartão postal cujas imagens vivas constroem a poética das imagens criadas; e o fora, lugar definido para os intérpretes quando não estão atuando. Por falar em imagem, destaco a capacidade criativa e a perfeita execução de uma cena quase romântica e cheia de expectativas de encontros afetivos protagonizada por Gustavo e Brenda. Ele representa Pedro, um jovem recém-separado que encomenda um frango com alface. Ela representa uma funcionária de uma lanchonete que vai até onde Pedro mora fazer a entrega do pedido. Chove muito quando ela chega na casa para entregar o frango. A surpresa do inusitado e o desejo de despertar a atenção de alguém faz com que os dois fiquem parados se olhando enquanto trocam algumas poucas palavras. Aqui, o surpreendente fica por conta de como a chuva é produzida: uma atriz parada atrás do casal borrifa jatos de água em forma de nevoeiro na direção dos rostos dos protagonistas. O signo do encontro na chuva é forte e poético, criando uma atmosfera romântica e ao mesmo tempo bem-humorada. O humor fica por conta da forma como a água é espargida nos rostos dos personagens e suas reações quase patéticas diante do clima chuvoso. Destaco essa cena, mas ao longo da peça o elenco nos brinda com outras imagens de grande potência poética, sempre recheadas de tiradas de humor tão importantes para a estética das cenas como a descrita acima. Destaco a afinação e a capacidade do elenco, que num ritmo ágil consegue construir e desconstruir imagens complexas sem perder a linha proposta pela concepção escolhida.
O ritmo e o humor presentes nos diálogos contribuem para que
a encenação de Cartão Postal seja de fácil entendimento e prazerosa aos olhos
do espectador. No jogo das cenas, merece
destaque a atuação de Galho, dessa vez não como diretor, mas como intérprete do
personagem Frede. Frede, o mongolóide da baia 56, como é chamado por seus
colegas de trabalho, é um homossexual preso ao desejo de conhecer um homem estoniano.
Frede trabalha em uma empresa onde passa os dias vigiado por câmeras, e isso
torna seus dias insuportáveis. A
individualidade e os desejos presentes nos discursos de Frede em muitos
momentos provocam gargalhadas na plateia. A interpretação de Galho é eficiente e
precisa, merecendo destaque para o tempo das piadas e a força de sua presença
cênica.
Cartão Postal não chega ser uma obra prima, mas a habilidade do elenco, a agilidade e a dinâmica das cenas, bem como a forma estética com que a peça é concebida, fazem com que a encenação cumpra com o que se propõe. Acredito que a trilha sonora deva ser repensada não só na escolha como nos momentos de suas incursões. A trilha, como signo importante para ajudar a contar uma história ou para reforçar a poética das cenas, precisa estar a serviço do conjunto cênico, o que não é o caso. A iluminação de João Vitor é suficiente, porém sem nenhum destaque importante. Acredito que o grande mérito de Cartão Postal esteja na presença e na interpretação dos atores, na simplicidade e na utilização da cenografia e na atualidade da dramaturgia. Assim, concluo essa escrita parabenizando os componentes do Coletivo Meiaoito: Lucas Galho pela direção, cenografia e interpretação de Frede; Alice Buchweitz; Brenda Seneme por sua brilhante interpretação da personagem sedenta por um café afetivo; Gustavo Brocker e seu Pedro vivendo um labirinto de vazios existenciais; Lizi Fonseca e sua psiquiatra, Mariana Padu e João Vitor. Vida longa ao Cartão Postal mais cheio de destinatários que já conheci.
Crédito da foto Giuliano Bueno
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