A mensagem da nova geração
Raquel Guerra
A segunda noite de espetáculos do
FESTE foi agraciada pela apresentação do espetáculo Cartão Postal, do Coletivo Meiaoito, da cidade de Pelotas. O
trabalho já foi premiado por sua participação no 13º Festcarbo e no 13º Art in
Vento, festivais que ocorrem no interior do Rio Grande do Sul.
Na apresentação de ontem, a
encenação ganhou vida cênica outra vez. No entanto, apesar de uma atuação cheia
de energia e empolgação, o que a
peça nos revela é uma existência
moribunda, desgastada pelas insensibilidades das relações amorosas, pela
solidão silenciosa da vida contemporânea que se esconde atrás de sorrisos
forçados e pelas insatisfações
frente à condição da existência
humana. A temática expressa é mais que urgente aos dias de hoje. E a comicidade
foi o meio escolhido pelo grupo para fazer com que nós, espectadores, possamos
olhar e refletir sobre a solidão humana em um mundo tão cheio de aparelhos de
comunicação e cotidianos tão cheios de pessoas. Ao final de tudo, estar rodeado de pessoas ou estar conectado
aos seus dispositivos de comunicação não garante nem a comunicabilidade nem a
felicidade.
Com direção de Lucas Galho, a encenação realiza uma adaptação do
texto Os estonianos, de Julia
Spadaccini, que é realizada pela atuação de Alice Buchweitz, Brenda Seneme,
Gustavo Brocker, Lizi Fonseca e
Lucas Galho. Cinco atores. Cinco
personagens. Cinco narrativas. E um infinito de angústias e desilusões da vida
cotidiana.
As transições de cena entre as
cinco narrativas apresentadas estão bem arranjadas. Os atores utilizam-se das
próprias ações de seus personagens para redefinir o espaço de cena, de modo que
entre um momento e outro existe uma fluidez na montagem cênica que garante o
bom ritmo do espetáculo. Um elemento que compromete um pouco este aspecto é a
entrada da música. Esta acaba por anunciar que uma cena acabou e outra
começará. E a repetição desse recurso da música, utilizado em várias
transições, torna a mudança de cena previsível e diminui a potencialidade
cênica que é criada pelos atores quando realizam as transições pelo próprio
jogo de cena.
De modo geral, as ações cênicas
são simples e bem executadas, com destaque especial para a cena do
guarda-chuva. Riquíssima em composição, imaginação e teatralidade. De um lado,
uma atriz com um guarda-chuva velho resumido
a sua estrutura metálica, de outro, um ator com um pacote de entregas na
mão. Entre eles, outra atriz utiliza um borrifador que agilmente espirra água
para um e outro lado. Uma solução e um recurso tão simples produzem uma cena
primorosa, que nos leva a mergulhar e se divertir com a magia teatral. Nesse
momento vemos os personagens serem encharcados debaixo de uma chuva torrencial.
Apesar de a quantidade real de água ser praticamente nada, a imaginação flui e
vemos os personagens molhando-se. Mas o que confere vida à cena, de fato, não é o recurso ou o
efeito técnico, é a atuação. A
corporeidade e o jogo de cena entre os três atores permitem que a cena ganhe um brilho especial.
Em relação à atuação, Cartão Postal utiliza diferentes
convenções, o que não chega a provocar uma quebra nem equívoco de linguagem,
mas marca uma heterogeneidade na composição das ações executadas pelos atores.
Em alguns momentos, como no início do espetáculo,
por exemplo, ou entre algumas transições de cenas, os atores realizam
movimentos que remetem a ações mais codificadas, de modo que a atuação ganha
uma corporeidade menos figurativa, através da gestualidade empregada pelos
atores. Noutros momentos, na maior parte da encenação, a atuação permanece em
um registro mais cotidiano, no qual as falas e ações dos atores se expressam
mais realistas.
O ritmo da montagem se manteve do início ao fim, como toda peça cômica
exige. O trabalho de direção é competente, tanto por suas escolhas no arranjo
da cenografia quanto pela movimentação dos atores na composição e mudança de
cada narrativa. As cenas são leves e divertidas. E o ritmo próprio à comicidade está presente na atuação e
no jogo de cena entre os atores. Não por acaso, a peça teve uma boa recepção do público que esteve presente na
apresentação realizada no Teatro Bruno Kiefer.
Após Cartão Postal, fiquei refletindo
sobre o que a encenação nos traz para pensar o teatro nos dias de hoje. E, para
além da análise da cena ou da recepção da apresentação de ontem, fiquei
encantada com a chegada das novas gerações do teatro gaúcho.
Como é bom ver um novo grupo
de teatro, com atores jovens, arriscando-se a explorar um tema tão denso e
complexo. Um conteúdo que talvez eles próprios ainda nem tenham vivenciado. Por um lado, a falta de maturidade dos
atores talvez não lhes permita
aprofundar algumas cenas com a complexidade das relações que o texto sugere.
Por outro lado, a leveza e o timing
cômico na atuação revelam um elenco precioso, integrado, com uma escuta cênica
generosa e atenta ao colega de cena. Curiosamente, o excesso de solidão, a
infelicidade e o discurso
cansativo do final de um relacionamento amoroso, que são abordados nas cenas e
são o mote do texto, não estão presentes nos atores quando se refere a sua
presença e vida cênica. Pelo contrário, o que vi foi uma felicidade manifesta
neste coletivo Meiaoito. E eles parecem estar em um começo de relacionamento
muito afetivo. A solidão não tem lugar no jogo de cena, pois os atores
revelam-se apaixonados pelo trabalho que executam no aqui e agora teatral, com
uma sensibilidade linda de ver. Uma escuta atenta ao outro, tão necessária para
o ator.
As novas gerações se arriscam a
fazer teatro. Se imaturos para a dimensão dos problemas que a trama apresenta,
em termos da dramaturgia, são maduros até demais na proposição. Quisera que o
teatro mais vezes se arriscasse a trazer à cena temas tão fortes em uma cena
tão leve.
Por fim, reflito sobre a
importância de um evento como este, que traz grupos do interior para Porto
Alegre. O FESTE mostrou na noite de ontem uma nova geração de artistas, que nos exibem suas escolhas e seu modo de,
simultaneamente, perpetuar e renovar o fazer teatral. E foi assim que saí do espetáculo ontem,
celebrando a vinda de novas gerações de artistas.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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