O Ferreiro e a Morte: adaptação gaúcha traz mulher interpretando Jesus
Cristiano Goldschmidt
A Cia Cena Viva, de Santa Rosa (RS), trouxe para o 3º
Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE) a comédia O Ferreiro e
a Morte, texto de Mercedes Rein e Jorge Curi. A montagem, dirigida por Jadson
Silva (que também atua, assina figurino, iluminação, sonoplastia, maquiagem e
cenografia), foi apresentada ontem no Teatro Carlos Carvalho da Casa de Cultura
Mario Quintana. No elenco, estudantes de diferentes escolas públicas do
munícipio do Noroeste gaúcho, alunos das Oficinas de Teatro ministradas por
Jadson naquela cidade.
A história gira em torno de Miséria (Jadson Silva), um
ferreiro que vive com a irmã Peraltona, ou Pobreza (Vitória Ribas). Amante da
liberdade, dos amigos e da bebida, tudo o que Miséria deseja é sossego, mas sua
rotina sofre reviravolta após receber a visita de Nosso Senhor Jesus Cristo
(Joana Dorfer) e de São Pedro (Lucas Vieira). Sensibilizado com a generosidade
de Miséria, que não mede esforços em oferecer-lhes o pouco que tem para comer e
beber, Nosso Senhor concede a ele o direito de fazer três pedidos.
Viciado em jogos, Miséria pede que nunca perca um jogo, o
que o transforma em um homem rico, vencendo um jogo atrás do outro, amealhando
a fortuna dos adversários. A irmã Pobreza, de olho no dinheiro do irmão,
convence Miséria a conceder um empréstimo ao Governador (Josafa de Souza) para
que este se case com ela. O Governador, por sua vez, fazendo jus à fama dos
maus políticos, convence Miséria a repassar-lhe toda a fortuna, prometendo
administrar os bens de forma a ajudar os que precisam. Convencido pelo cunhado
a abrir mão de tudo, Miséria volta a ficar pobre, sendo alvo do desprezo da
irmã, agora rica e avarenta, casada com o Governador e cercada de serviçais.
Outro pedido feito por Miséria à Nosso Senhor é a
oportunidade de permanecer vivo por mais trinta minutos para aproveitar os
prazeres mundanos quando chegar a sua hora de partir. Vítima de uma facada
quando se envolve em uma briga com um advogado (Fernanda Hirt), Miséria se
depara com a Morte (Alexia Ribas), que vem lhe buscar. Enganada pelo ferreiro,
a Morte é presa no alto de uma escada, ficando impossibilitada de levá-lo
consigo e de cumprir sua missão.
Com a Morte presa na escada, o céu e o inferno deixam de
receber os mortos, dando início a uma grande confusão terrena. A aparição de
Lillith (Kennedy Batista) diretamente do inferno, acompanhado de duas odaliscas
(Gabriela Vogt e Lucia Gasen), traz diversas artimanhas, tentativas de
convencer Miséria a libertar a Morte para que essa cumpra com suas obrigações.
A escolha de O Ferreiro e a Morte pelo diretor Jadson Silva
foi uma aposta perigosa que acabou dando certo. Formada por um elenco grande, neste
caso atores e atrizes iniciantes, com pouca ou nenhuma experiência nos palcos,
a montagem cumpre com seu objetivo e proporciona aos espectadores momentos de
muito riso, indicando cuidado na direção e harmonia em cena.
Mesmo com todo esse cuidado, a inexperiência do grupo fica
evidente em certas passagens, com alguns exageros e certa insegurança, imaturidade
profissional que tende a se dissipar com o estudo e o trabalho contínuos.
Pequenos equívocos que não comprometem seu desempenho, e a montagem apresenta
um resultado final satisfatório, com atores e atrizes dominando o texto e o espaço
cênico. Claro, há erros que precisam ser reparados, como os momentos em que
atores ficam uns na frente de outros, comprometendo a harmonia da cena e a
visibilidade do público. Talvez o fato de o próprio diretor estar em cena
contribua com a dificuldade em identificar esses pequenos erros.
Adaptada com coreografias, figurinos (homens de bombacha,
mulheres de vestido de prenda) e trilha sonora típicos do Movimento
Tradicionalista Gaúcho, chama nossa atenção a escolha de uma mulher para
interpretar Nosso Senhor Jesus Cristo. Intencional ou não, essa corajosa e
acertada escolha do diretor contribui para tornar o espetáculo ainda mais
interessante, e a atriz soube dar conta do recado.
Uma figura feminina interpretando Jesus Cristo contribui
para as discussões em torno das questões de gênero, presentes em montagens
recentes, e, neste caso, nos remete à encenação de O Evangelho Segundo Jesus,
Rainha do Céu, protagonizada pela atriz e mulher trans Renata Carvalho, que
teve sessões censuradas em algumas cidades do Brasil e tentativa de censura em
Porto Alegre.
O Ferreiro e a Morte tem ainda no elenco Eduarda Moura (que
se reveza entre as personagens Vizinha, Jogador 2 e Sargento), Rafaela Hennig
(intérprete de Dona Jesusa) e Rafaela Alves (Mendigo, Lacaio e Papa Defuntos).
Com um elenco grande, o diretor conseguiu contornar as dificuldades e levar ao
palco um espetáculo bonito, com o qual o público se identifica e se diverte, e
é compreensível que algumas falhas tenham permanecido. A torcida é para que
Jadson Silva dê continuidade ao seu trabalho, para que os jovens de Santa Rosa
continuem estudando e fazendo teatro, e para que as escolas continuem apoiando
iniciativas como essa, contribuindo para a profissionalização do teatro no
interior do Estado.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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