terça-feira, 10 de dezembro de 2019


Duas Olgas em cena

Renato Mendonça


Olga Benário (1908-1942) era uma pedra nas botas dos nazistas. Ainda adolescente, foi quadro destacado da juventude comunista alemã que lutava nas ruas contra as milícias nacional-socialistas. Depois de algum tempo na URSS, viaja ao Brasil para ajudar Luis Carlos Prestes nas ações do Partido. Casa-se com ele. Em 1936, presa com Prestes logo após a Intentona, Olga grávida é deportada para a Alemanha, internada em campos de concentração até sua morte em uma câmara de gás.

Este é o resumo da vida e da morte de uma militante rígida e voluntariosa, odiada pelos nazistas por não colaborar mesmo após punida com temporadas na solitária, líder que organizava atividades de história e ginástica para que suas colegas de campo não esmorecessem. Esse resumo, entretanto, confina Olga a uma dimensão apenas – ela não guardava forças para o amor? 

O monólogo Olga, do grupo ArtisticaMente (Canela), responde a essa pergunta acompanhando os últimos dias da militante e mulher, confinada no campo de extermínio de Bernburg. Mesmo restrita à cela, a prisioneira se emociona ao lembrar da filha Anita e do marido Carlos. Restam-lhe dias, talvez horas, mas ela se liberta ao afirmar sua humanidade. Edelweiss Ramos é quem interpreta, ou melhor, vive Olga. 

A encenação da diretora Luana Ferrão tem vários acertos. Primeiro, dispõe a cela de 2m x 2m no centro de uma arena, expondo o público à sensação de confinamento, mas também à emoção sem freios da presa. Trata-se de um monólogo, mas a trilha sonora, que reproduz discursos de ódio de Hitler, ruídos de trens e de botas marchando, serve como uma espécie de antagonista a Olga.

O espetáculo coloca em cena tanto a militante disciplinada e implacável quanto a mãe e amante devotada, e esse é seu maior mérito e seu maior desafio. A personagem está em uma situação limite – melhor dizer em uma situação sem limites. Talvez haja mesmo uma guerra interior, entre emoção e determinação. De todo modo, não há o que refrear, é o tudo ou nada, os sentimentos são o que resta, em breve estará aspirando o letal Zyklon-B. 

Por conta disso, a interpretação de Edelweiss segue no fio da navalha, submetida a um equilíbrio instável. Ela brilha na cena em que Olga desata num discurso político inflamado, entremeado por sussurros candentes de “Anita! Anita!”. Outro exemplo de sutileza pode ser visto no início da peça, quando a personagem está ajoelhada enfileirando pedaços de miolo de pão, evocando uma sensação tocante de fragilidade e resiliência. Mas às vezes a ótima Edelweiss deixa vazar demais a emoção ou hesita no texto, exaurida talvez pela voltagem emocional que a personagem lhe exige.

Não cabe aqui discutir as contradições da cidadã Olga – ela investe aos berros contra os tiranos, mas esquece que Stálin foi o ditador que mais matou comunistas na história. Saímos do espetáculo intolerantes com a intolerância, revoltados com o arbítrio, emocionados pela jornada da mãe separada da filha, chocados com a cena final da execução. Mas Olga é também a oportunidade de refletirmos se estamos endurecendo e perdendo a ternura.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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