Entre a Guilhotina e o Cuitelinho
Camilo de Lélis
O Grupo de Teatro Coadjuvantes (Charqueadas) está a meio
caminho de completar a sua trilogia sobre a obra do dramaturgo alemão Georg
Büchner. A companhia trouxe ao FESTE, no ano passado, Leonce e Lena, agora vem
com A Morte de Danton, prometendo para breve Woyzeck, a famosa peça que Büchner
deixou inconclusa, ao morrer com 23 anos, em 1837.
A tragédia de Büchner aponta para a Revolução Francesa, que
marcou o início da era contemporânea, na qual a classe vencedora, no fim das
contas, foi a burguesia, com os girondinos tomando o poder, depois de uma fase
inicial de perseguições sanguinolentas na ditadura dos jacobinos, encabeçada
por Robespierre, dito o incorruptível. Robespierre temia Danton e precisava
eliminá-lo, na ilusão de que com este morreria a oposição à sua conduta
moralista e paranoica. Robespierre acusava meio mundo de ser inimigo da
revolução. Nos anos chamados “período do Terror” – 1793/1795 – caíram cerca de
vinte mil cabeças, desde os reis de França Luis XVI e Maria Antonieta, até os
próprios revolucionários de primeira hora. A Revolução comeu seus próprios
filhos, como se dizia. Georg Büchner, também um revolucionário em seu tempo e
país (1813 – 1837), percebeu o quanto de crueldade havia nesses movimentos
convulsivos de radical transformação social. E Danton foi o personagem
escolhido por Büchner para representar o desalento que tomou conta dos jovens
que tinham ideias mais tolerantes e abrangentes em relação à nova sociedade.
Sociedade que se esperava surgisse com o fim do absolutismo vigente na Europa
àquela época. A tragédia descreve a derrocada dos ideais e o inevitável
fracasso humano nos momentos que antecederam a morte de Danton e de seu amigo
Desmoulins na guilhotina.
O coletivo Coadjuvantes, dirigido por Eduardo Arruda, não
obteve sucesso em mostrar os conflitos entre as tendências políticas em jogo, sem
definir com clareza os agentes revolucionários. Os discursos éticos das
personagens estão abafados por uma coleção de efeitos estéticos, tanto nas
marcações artificializadas, que afastam um necessário realismo com que o drama
obteria credibilidade e verossimilhança, quanto na maneira monocórdia que
algumas falas importantes são ditas. O exemplo mais contundente é o da
narradora da abertura, em perna-de-pau, Nina Alves. O diretor teria muito a ganhar se
corrigisse a oratória dessa ótima atriz e cantora. O texto dela, que é de
grande importância para introduzir o público no drama, está balançando como se
também a fala se equilibrasse nas pernas-de-pau. O corpo da voz precisa ser
dominado e a oratória estar a serviço da clareza e do convencimento, quem fala
deve ter total consciência do que diz, para quem diz e qual o seu intento com o
discurso. Devemos aprender com Danton a falar para as massas com paixão. E com
Bertolt Brecht, no texto em questão, a chamar o espectador à
consciência de como ocorrem as injustiças.
Percebe-se logo na entrada pela presença dos atores pela
plateia, tocando seus instrumentos e cantando, que o coletivo Os Coadjuvantes se
mantém fiel a uma escolha conceitual e formal para seu estilo de representar.
Não há como não ver, na caracterização do grupo, uma influência na moda que o
encenador mineiro Gabriel Villela lançou no Brasil na década de 90, com sua
antológica montagem de Romeu e Julieta. Parece que essa foi a escolha de
Os Coadjuvantes para colocar a trilogia de Büchner dentro de uma unidade
estética referente ao folclore brasileiro. O figurino, a maquiagem e as
máscaras remetem à carnavalização peculiar que alguns grupos têm elegido para
criar identidade. Carnavalização é o termo mais apropriado para definir a
miscelânea de referências exóticas que foram sobrepostas à história do período
mais sombrio da revolução francesa – no caso, a morte de Danton. As vestimentas
misturam orixás africanos com roupas medievais. A maquiagem desenha clowns com
traços cubistas, não faltando o clássico nariz vermelho de palhaço.
As caracterizações não são claras, à exceção das personagens
mais ridicularizadas. A rainha Maria Antonieta, com sua peruca de bolo,
manipulando um boneco de luva, que é o rei Luis XVI, torna-se um dos melhores
achados da encenação. O que ocorre é que o grupo se utiliza de uma forma de
representação estilizada com a expectativa de que o público conheça seus
códigos e os interprete automaticamente. Mas isso não se dá. Tudo fica muito
parecido. As marcações cênicas buscam originalidade, com imagens quase
barrocas, quase circenses, quase absurdas, gerando uma confusão de
possibilidades de leituras, o que não permite ao espectador acessar realmente o
drama proposto pelo dramaturgo. Na comédia Leonce e Lena, que assisti no ano
passado, a performance do grupo, utilizando esses mesmos elementos, foi bem
mais feliz. É de se refletir sobre a diferença de gênero que há entre uma
comédia e uma tragédia. Em A Morte de Danton, o andamento rítmico do espetáculo
se mantém linear desde o começo até o fim, com poucas erupções, geralmente
vindas das cantorias que o elenco traz, à maneira de quebras e saltos
dramáticos, sendo esse, para mim, o ponto forte do grupo – saber tocar e cantar
muito bem. Por certo o desempenho cresceria se os atores falassem com a mesma
clareza e potência com que cantam as belas canções escolhidas para a peça.
Talvez a atmosfera trágica de A Morte de Danton tenha
contaminado o andamento do espetáculo, puxando o efeito para o missal, a
ladainha e a melopeia. Embora com alguns efeitos cômicos, no geral a obra
terminou por se mostrar um espetáculo poético em que a poesia não se realiza.
Reitero o que escrevi sobre a excelente comédia Leonce e
Lena, na qual eu já percebia que o estilo adotado pelo grupo, em vez de liberar
a criatividade, está constrangendo o seu desempenho, está amarrando a estética
a imagens desgastadas. A companhia precisa achar a sua marca própria, pesquisando
suas características de origem, a história da região em que se hospeda e
produz, buscar formação e erudição na área teatral. E, principalmente,
libertar-se do Gabriel Villela. Potencial não lhes falta.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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