O inferno somos nós
Renato Mendonça
Oportuna a remontagem de Dois Perdidos numa Noite Suja pelo
Loucos de Palco (Santa Rosa). Um dos textos mais encenados do dramaturgo
santista Plínio Marcos (1935-1999), a peça escrita em 1966 desfila uma
sequência de cenas opondo os personagens Paco e Tonho num quarto miserável de
hotel. Não são apenas as pulgas que os atormentam: Paco lamenta o roubo de sua
flauta, Tonho diz que não consegue emprego porque seus sapatos são velhos. Mais
que tudo, vale a frase “O inferno somos nós”: Tonho insiste para que Paco lhe
empreste uns pisantes de respeito, mas o que recebe em troca são as provocações
de Paco, que intica com o outro chamando-o de homossexual, de covarde, de
filhinho de papai e mamãe. É como se os dois vivessem em regime semiaberto: de
dia trabalham como trabalhadores braçais na feira, de noite voltam para sua
cela.
Dois Perdidos... foi recebida com entusiasmo ao estrear em
1966, com o próprio Plínio Marcos vivendo o papel de Paco. Ouvia-se a voz da
periferia no palco, suas gírias, seus palavrões. O golpe militar completava
dois anos, e a violência política estava em cena na relação disfuncional entre os
dois biscates, se não de forma explícita, certamente na sensação de falta de
horizonte, de submissão a um sistema, de identificar no outro um inimigo, mesmo
que este fosse um parceiro de infortúnio. Não deixava de ser um pequeno escândalo político: Paco e
Tonho são dois lúmpens sem consciência alguma de classe. De forma cruel,
especialmente Paco introjeta a figura do opressor, do manipulador que põe lente
de aumento nas falhas do outro para melhor o controlar, aquele que propõe
polêmicas em série para desgastar o outro. Na habilidade de Plínio Marcos, o
conflito entre dois homens expunha mecanismos de poder não apenas em nível
pessoal, mas também de classe.
O duelo de Paco e Tonho segue atual? A julgar pela escala
milionária no número de desempregados e subempregados hoje em dia no Brasil,
certamente. Mas, de novo, a relevância de Dois Perdidos numa Noite Suja vem de
mostrar que as primeiras leituras são quase sempre enganosas. Embora as falas
cruas, as ações casuais, uma trama até previsível, trata-se de um texto sutil,
com personagens complexos. Os dois em cena concordam em sua descrença de que
haja solidariedade entre as pessoas, e a dupla fecha também na ilusão de que
uma solução mágica os tire do buraco – para um, bastaria uma flauta; o outro se
contentaria com um par de sapatos. Mas a postura ativa de Paco é falsa – ele é
um covarde, um adesista de ocasião. E a passividade de Tonho tem limite e
definirá o fim trágico da peça.
O Loucos de Palco teve, portanto, um desafio enorme à
frente. Dois Perdidos... não exige grande elenco ou cenografia complicada. Suas
falas enxutas e quase musicais são um deleite para os atores, impondo o ritmo
naturalmente. Mas retomo à questão de a peça ser sutil. Os dois personagens
estão a ponto de explodir, são como dois animais enjaulados, têm a
imprevisibilidade daqueles condenados à mediocridade perpétua. E as alternâncias
da posição de quem domina o jogo se sucedem, exigindo do direção muito cuidado.
O diretor Jadson Silva, que também interpreta Paco, propõe
uma encenação sem maiores ousadias (na transposição de Dois Perdidos...para o
cinema, em 2002, o diretor José Joffily ambientou a história nos EUA e colocou
Paco como um papel feminino). Na montagem do Loucos de Palco, há duas camas, um
rádio na cabeceira, as roupas de cama encardidas, uma bacia de água para
refrescar o rosto. Na trilha setentista, ouvem-se Nelson Gonçalves, Originais
do Samba e Cartola. É nesse cenário naturalista que Paco e Tonho (Anderson
Farias) se enfrentam noite após noite. Jadson constrói um Paco consistente, que
não perde o colorido da voz mesmo nas trocas de farpas mais pegadas. Anderson
por vezes se deixa contaminar pela falta de brilho do seu personagem. Esse
desequilíbrio deve ser corrigido, já que Paco e Tonho devem ser forças antagônicas
e de igual potência para garantir a sensação constante de um desastre iminente.
Por outro lado, as disputas entre os dois perdidos se repetem noite após noite,
o que coloca a passagem do tempo como uma dimensão importante que deveria ser
melhor marcada pela iluminação do espetáculo.
Dois Perdidos numa Noite Suja encerra vários acertos para o
Loucos de Palco: é um texto antológico e oportuno no momento atual do Brasil,
propõe um desafio e tanto para os atores, trata-se de uma produção fácil de
viajar. Já para nós todos, brasileiros, perdidos em dias e noites em que a
agressão mútua é a atividade mais frequente, a história infausta de Paco e
Tonho serve como lição e alerta.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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