sábado, 7 de dezembro de 2019


Violência, marginalidade e opressão

Pedro Delgado


Dois Perdidos numa Noite Suja, peça de Plínio Marcos inspirada no conto O Terror de Roma, do escritor italiano Alberto Moravia, foi apresentada pelo grupo Loucos de Palco na noite de 5 de dezembro, no Teatro Bruno Kiefer. A apresentação fez parte da programação do 4° Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE). 

O texto escrito por Plínio Marcos em 1966 é uma denúncia da violência, da marginalidade e da opressão vividas pela sociedade dos anos 60. A narrativa revela o cotidiano de Paco e Tonho, que dividem quarto numa hospedaria barata. Durante o dia, os dois trabalham descarregando caminhões de peixe no mercado público, onde se estabelecem disputas hierárquicas de poder entre os operários que ali trabalham. Todas as cenas se passam no quarto da hospedaria, onde os personagens discutem sobre suas vidas, sobre trabalho e sobre perspectivas futuras.

O tema “marginal da sociedade oprimida” permeia todo o texto, estabelecendo uma espécie de jogo entre Paco e Tonho. Este último, um rapaz vindo do interior para tentar a vida na cidade, se lamenta constantemente por não possuir um par de sapatos decente, fato ao qual atribui sua pobreza. Ele inveja Paco, que possui um bom par de sapatos. Este, por sua vez, vive a provocar o outro ao mesmo tempo em que o considera como um parceiro. Paco, que às vezes ganhava algum dinheiro como flautista, tem seu instrumento roubado durante uma bebedeira. Tonho, por sua vez, se envolve numa confusão com um colega de trabalho (Negão) com quem é obrigado a dividir, sob ameaças, o dinheiro que recebe por seus serviços. Assim, diante da necessidade de comprar uma nova flauta, Paco convence Tonho de que a única maneira de este conseguir um novo par de sapatos é assaltando casais de namorados no parque. O primeiro assalto é realizado, porém, durante a divisão do dinheiro e dos objetos roubados, a dupla não se acerta, e Tonho mata Paco. 

Mesmo sendo um clássico da dramaturgia brasileira, a narrativa da peça, se por um lado revela uma sociedade contemporânea violenta e marginal, por outro reforça discursos que hoje são bastante questionados, como a intolerância e o ódio contra diferentes etnias, sociedades marginalizadas e  diferenças sexuais. Esse reforço fica mais evidente quando Paco descobre que o tal “Negão” está extorquindo Tonho, que aceita a intimidação temendo agressões físicas. De posse dessa informação, Paco passa a ofender Tonho de “boneca do negão”, às vezes de “bicha do negão” ou, até mesmo, de “mulher do negão”. Todas essas expressões são utilizadas para diminuir o estatuto de homem (macho) de Tonho e desqualificá-lo.

Quanto à concepção da peça, as escolhas feitas pelo grupo não apresentam nenhuma novidade em relação à concepção e à poética das cenas. A direção de Jadson Silva coloca no palco exatamente o que o autor sugere: um quarto muito simples de pensão com duas camas de solteiro, alguns poucos móveis compostos por caixas de madeira e um vaso sanitário que não acrescenta em nada dramaturgicamente falando. Por acreditar que quando um significante é colocado em cena deva ser pela necessidade de uma construção dramatúrgica, fiquei esperando por algo que justificasse a presença de uma peça que sugere diversas possibilidades. Não foi o caso: o vaso está ali apenas para decorar o espaço, enfraquecendo a potência sígnica do objeto. O mesmo acontece com um ventilador que fica todo o tempo dentro de uma das caixas de madeira.

Das escolhas interpretativas e construções corpóreas dos personagens: aqui ficam evidentes duas forças por parte dos personagens e duas potências diferentes no que tange aos atores. Paco (Jadson Silva) é um personagem opressor, provocador, marginal, irritante e até um tanto cruel, ao mesmo tempo que é um cara malandro, escorregadio, “vacilão” e até frágil. O ator consegue colocar em cena todas essas características com muita propriedade e segurança. Seu deslocamento espacial é potente e com interessantes variações rítmicas que lhe rendem boas imagens ao mesmo tempo em que provocam o público a partir de sua apropriação e domínio das ações e do texto. Percebe-se que é um ator que pesquisou a dramaturgia e, com isso, executa um bom trabalho de composição de personagem.

A mesma força, porém, não percebe em Anderson Farias.  Seu Tonho parece que ainda não foi descoberto, o que faz com que a interpretação se torne oscilante, próxima do óbvio. Às vezes parece que o personagem abandona o corpo do ator, e esse acaba tropeçando no texto, o que fragiliza a narrativa e a dramaturgia. São poucos os momentos em que Tonho está mais presente que o ator. E é exatamente nesses instantes que o jogo entre os dois personagens se acentua, tornando a cena imprevisível e interessante. É quando o acontecimento teatral prende o olhar e o estado de presença do próprio espectador, já que a força dramatúrgica da peça está nos encontros dialógicos de confrontos verborrágicos. Por outro lado, quando esses encontros não ocorrem, o jogo fica fragilizado e a peça, desinteressante. É como se existisse uma fissura que impede que o jogo aconteça, expondo a ausência de uma verdade cênica no encontro entre os dois personagens. Na verdade, é apenas a ausência de sintonia de jogo entre os atores. Talvez seja o caso de a direção investir mais nas sutilezas e nos conflitos internos da Tonho. Fica a dica também para que os atores explorem mais as ações físicas na busca de uma estética mais visual, tendo cuidado para que a força da dramaturgia não desapareça. A direção talvez deva também apostar mais na variação da forma de iluminar as cenas.

As observações acima, que numa leitura mais superficial podem parecer estar diminuindo o mérito da peça, na verdade são apontamentos para que a mesma ganhe mais dinamismo e força dramática, pois estamos diante de um trabalho bem desenvolvido e com grandes possibilidades de um futuro muito promissor. Por isso, parabenizo o grupo e fico na torcida pelo sucesso do mesmo e por uma vida longa a Dois Perdidos numa Noite Suja.
  
Crédito da foto: Giuliano Bueno (na imagem, Jadson Silva)

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