Poéticas da lama
Viviane Juguero
O Coletivo Teatral Pyton, de Porto Alegre, apresentou, na
noite da última quinta-feira (05/12/19), dentro do FESTE (Festival Estadual de
Teatro), uma montagem do texto Mata teu Pai, de autoria de Grace Passô,
reconhecida por assinar dramaturgias engajadas com a questão da mulher e das
narrativas negras, dentre outros enfoques socioculturais.
Em Mata teu Pai, Grace Passô fundamenta seu trabalho na
tragédia Medeia, escrita no Século IV a.C. por Eurípedes. Esse texto é, por sua
vez, embasado no mito grego no qual Medeia trai sua própria família e abandona
sua terra ao apoiar Jasão a conquistar o velocino de ouro. Vitorioso, ele
retorna para a Grécia, junto com a estrangeira Medeia, com quem se casa. A peça
de Eurípedes inicia com Medeia repleta de rancor e fúria por ela e seus filhos
terem sido abandonados pelo marido para que ele realize novo casamento com a
filha do rei. Nestas condições, a personagem é traída pelo esposo Jasão e
abandonada pelo Estado, que a condena ao exílio. Medeia, então, trama um plano
e consegue executar o rei e sua filha, concluindo o seu ato de horror ao matar
os próprios filhos para aumentar o sofrimento de Jasão.
Na dramaturgia de Passô, o mito é utilizado de forma
metafórica e abarca questões urgentes da atualidade. Medeia vive em meio a
diversas mulheres, a maioria estrangeiras e solitárias, com as quais estabelece
relações cúmplices e divergentes. Nessa construção, o texto remete às diásporas
da atualidade e à situação da mulher, diariamente violentada pelo excesso de
exigências, culpabilizações e pelo abandono que emerge da negligência
masculina, amplamente respaldada pela cultura patriarcal. Nesta peça, Medeia
não condena a noiva de Jasão, mas reconhece que é ele o responsável pela
traição e abandono familiar. O convite a matar o pai, é, por fim, uma alusão à
necessidade de extinguir a cultura patriarcal, ou seja, uma reivindicação das
imprescindíveis e amplas transformações culturais, sem as quais não é possível
modificar as emoções e valores hegemônicos que fundamentam preconceitos e
violências da atualidade.
Na montagem do grupo Pyton, formado por jovens artistas
oriundos do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, a proposta ganha outras
camadas de significação. Medeia e as demais mulheres são interpretadas de forma
coletiva, por um grupo que funciona como um coro e é formado majoritariamente
por pessoas negras. Nesta composição, essas vozes convergentes são emitidas por
cinco mulheres e um homem, o que amplifica a percepção da construção cultural
na qual esses valores estão enraizados.
A encenação acontece na rua, em formato de semi-arena, o que
potencializa as intenções inclusivas do grupo, posto ser a rua um palco
democrático e acessível aos transeuntes. Vale salientar, no entanto, que o
grupo não domina as especificidades deste tipo de linguagem cênica, e o desafio
de realizar um texto tão complexo na rua resulta em lacunas de entendimento da
narrativa. Além disso, as formas de elocução se mantém monocórdias em quase
toda a encenação, assim como a composição rítmica da estrutura, o que impede a
instauração de distintas atmosferas em boa parte da peça. Ainda sobre o aspecto
sonoro, percebe-se que a interessante proposta de utilização de canto e
instrumentos percussivos solicita maior domínio técnico para que possa alcançar
o efeito almejado.
Vale destacar que a encenação apresenta movimentações e
imagens que, além de belas, contribuem na composição das reflexões propostas.
Cito, como exemplo, a exploração de corpos que carregam sacos pesados, o mar
revolto da cruel travessia diaspórica, a violência do estupro coletivo, a
imobilização da tortura mumificada e a postura altiva da covardia das armas. O
coro homogêneo que compõe essas cenas traja um figurino que alude à lama e, por
sua indistinção, destaca a beleza da diversidade do elenco. Essa lama pode ser
associada, por um lado, à sujeira simbólica da mesquinharia e do preconceito e,
por outro lado, à questão da terra e da ancestralidade, tão cara à cultura
afro-brasileira, ou ao barro do qual Deus criou a humanidade e para o qual a
mesma retornará após a morte, na cultura cristã. Essa dialeticidade, porém, é
pouco presente na construção discursiva, onde predomina um tom dogmático no
qual acusações resultam em respostas definitivas, ao invés de propor caminhos
para a reflexão sobre os múltiplos fatores que envolvem os temas abordados. No
entanto, na cena desenvolvida por meio do jogo Escravos de Jó, os movimentos da
brincadeira, o tom da melodia e a temática opressora compõem um conjunto que
amplia a possibilidade de percepções e questionamentos, sem perder o
direcionamento defendido pelo grupo, o qual é, aqui, complexificado.
Saliento a relevância de essa equipe de jovens artistas
estar engajada em uma arte que se reconhece como formadora e transformadora
social. A presença concreta e simbólica desses corpos diversos traz às ruas uma
potência de luta poética que se contrapõe à repressão e à depressão. Em tempos
em que imperam discursos negativos sobre nossa cultura e nosso país, a ação
artística mais revolucionária é aquela que mantém nossa luta, nossa reflexão e
nossos sonhos para um porvir mais digno, solidário e feliz. Evoé!
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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