sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


Poéticas da lama

Viviane Juguero



O Coletivo Teatral Pyton, de Porto Alegre, apresentou, na noite da última quinta-feira (05/12/19), dentro do FESTE (Festival Estadual de Teatro), uma montagem do texto Mata teu Pai, de autoria de Grace Passô, reconhecida por assinar dramaturgias engajadas com a questão da mulher e das narrativas negras, dentre outros enfoques socioculturais.

Em Mata teu Pai, Grace Passô fundamenta seu trabalho na tragédia Medeia, escrita no Século IV a.C. por Eurípedes. Esse texto é, por sua vez, embasado no mito grego no qual Medeia trai sua própria família e abandona sua terra ao apoiar Jasão a conquistar o velocino de ouro. Vitorioso, ele retorna para a Grécia, junto com a estrangeira Medeia, com quem se casa. A peça de Eurípedes inicia com Medeia repleta de rancor e fúria por ela e seus filhos terem sido abandonados pelo marido para que ele realize novo casamento com a filha do rei. Nestas condições, a personagem é traída pelo esposo Jasão e abandonada pelo Estado, que a condena ao exílio. Medeia, então, trama um plano e consegue executar o rei e sua filha, concluindo o seu ato de horror ao matar os próprios filhos para aumentar o sofrimento de Jasão.

Na dramaturgia de Passô, o mito é utilizado de forma metafórica e abarca questões urgentes da atualidade. Medeia vive em meio a diversas mulheres, a maioria estrangeiras e solitárias, com as quais estabelece relações cúmplices e divergentes. Nessa construção, o texto remete às diásporas da atualidade e à situação da mulher, diariamente violentada pelo excesso de exigências, culpabilizações e pelo abandono que emerge da negligência masculina, amplamente respaldada pela cultura patriarcal. Nesta peça, Medeia não condena a noiva de Jasão, mas reconhece que é ele o responsável pela traição e abandono familiar. O convite a matar o pai, é, por fim, uma alusão à necessidade de extinguir a cultura patriarcal, ou seja, uma reivindicação das imprescindíveis e amplas transformações culturais, sem as quais não é possível modificar as emoções e valores hegemônicos que fundamentam preconceitos e violências da atualidade.

Na montagem do grupo Pyton, formado por jovens artistas oriundos do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, a proposta ganha outras camadas de significação. Medeia e as demais mulheres são interpretadas de forma coletiva, por um grupo que funciona como um coro e é formado majoritariamente por pessoas negras. Nesta composição, essas vozes convergentes são emitidas por cinco mulheres e um homem, o que amplifica a percepção da construção cultural na qual esses valores estão enraizados. 

A encenação acontece na rua, em formato de semi-arena, o que potencializa as intenções inclusivas do grupo, posto ser a rua um palco democrático e acessível aos transeuntes. Vale salientar, no entanto, que o grupo não domina as especificidades deste tipo de linguagem cênica, e o desafio de realizar um texto tão complexo na rua resulta em lacunas de entendimento da narrativa. Além disso, as formas de elocução se mantém monocórdias em quase toda a encenação, assim como a composição rítmica da estrutura, o que impede a instauração de distintas atmosferas em boa parte da peça. Ainda sobre o aspecto sonoro, percebe-se que a interessante proposta de utilização de canto e instrumentos percussivos solicita maior domínio técnico para que possa alcançar o efeito almejado. 

Vale destacar que a encenação apresenta movimentações e imagens que, além de belas, contribuem na composição das reflexões propostas. Cito, como exemplo, a exploração de corpos que carregam sacos pesados, o mar revolto da cruel travessia diaspórica, a violência do estupro coletivo, a imobilização da tortura mumificada e a postura altiva da covardia das armas. O coro homogêneo que compõe essas cenas traja um figurino que alude à lama e, por sua indistinção, destaca a beleza da diversidade do elenco. Essa lama pode ser associada, por um lado, à sujeira simbólica da mesquinharia e do preconceito e, por outro lado, à questão da terra e da ancestralidade, tão cara à cultura afro-brasileira, ou ao barro do qual Deus criou a humanidade e para o qual a mesma retornará após a morte, na cultura cristã. Essa dialeticidade, porém, é pouco presente na construção discursiva, onde predomina um tom dogmático no qual acusações resultam em respostas definitivas, ao invés de propor caminhos para a reflexão sobre os múltiplos fatores que envolvem os temas abordados. No entanto, na cena desenvolvida por meio do jogo Escravos de Jó, os movimentos da brincadeira, o tom da melodia e a temática opressora compõem um conjunto que amplia a possibilidade de percepções e questionamentos, sem perder o direcionamento defendido pelo grupo, o qual é, aqui, complexificado. 

Saliento a relevância de essa equipe de jovens artistas estar engajada em uma arte que se reconhece como formadora e transformadora social. A presença concreta e simbólica desses corpos diversos traz às ruas uma potência de luta poética que se contrapõe à repressão e à depressão. Em tempos em que imperam discursos negativos sobre nossa cultura e nosso país, a ação artística mais revolucionária é aquela que mantém nossa luta, nossa reflexão e nossos sonhos para um porvir mais digno, solidário e feliz. Evoé!

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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