Violências do contemporâneo em polifonia cênica
Raquel Guerra
O segundo dia do FESTE 2019 contou com a apresentação do
espetáculo Mata teu Pai, do Coletivo Pyton, de Porto Alegre. Em cena, seis
atores desenvolvem um trabalho sutil e intenso, que aborda questões cruéis de
nossa sociedade, como a violência, o preconceito e o massacre social. Segundo
os integrantes do Pyton, o grupo deu início a esta montagem a partir de uma
disciplina do Curso de Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, no primeiro semestre de 2018, com orientação do professor Henrique Saidel.
Além do espetáculo apresentado, o coletivo Pyton também divulga em sua rede social
uma montagem recente, realizada a partir de A Cantora Careca, de Eugène
Ionesco, com direção coletiva e orientação da professora Inês Marocco
(UFRGS).
No Instagram, o grupo mostra para quê e para quem veio: eles
intitulam-se um “coletivo teatral formado por mulheres, pretas, bixas,
sapatonas e estudantes do Curso de Artes Cênicas da UFRGS”. Sem medo de denunciar
o que a sociedade careta e conservadora gostaria de esconder, o coletivo Pyton expõe
nesse trabalho um conjunto de práticas sociais moribundas e escrotas. Por
meio de uma dramaturgia não linear, expressa por ações coletivas, canções e um
texto poético, surgem questões extremamente relevantes à reflexão (e revisão),
de nossos padrões sociais contemporâneos.
A peça tem início clamando pela atenção ao tema dos
imigrantes e depois desdobra-se em uma série de questões que, infelizmente,
vemos presente em nosso cotidiano: a exploração e violação do corpo feminino, a
discriminação racial, o abuso de poder, a supremacia branca, entre tantas
outras violências. A trama não se organiza pela causalidade, mas por uma
tessitura de situações diversas, encadeadas pela lógica das ações e canções
postas em cena, e não por uma sequência de fatos e acontecimentos contínuos.
Por isso, pode parecer difícil encontrar uma linha narrativa, ou descrever a
sinopse de uma história a ser contada. Essa não linearidade coloca um desafio à
cena, que é bem resolvido pelas atrizes e atores por meio de uma dramaturgia de
sensações. As cenas que presenciamos nos tocam, nos comovem e nos tiram do
lugar comum pela intensidade e presença com que os corpos do elenco se movem e
ressoam. Entre as cenas e situações − quase que independentes entre si − surgem
os momentos de canções do espetáculo, que marcam as transições e contribuem
para que a dramaturgia se organize em um outro espaço cênico.
A sonoridade do trabalho também tem um lugar especial. A
musicalidade já se anuncia antes mesmo de o espetáculo começar, enquanto os
atores se reúnem em círculo, jogando e entoando canções. O elemento sonoro
reforça uma identidade coletiva do trabalho, tanto pelo aspecto vocal e
instrumental, através das percussões, quanto pela noção de escuta e polifonia.
Quer façamos uma análise puramente musical, quer utilizemos da metáfora do som
para falar das relações em sociedade, a escuta marca um elemento coletivo
porque cada participante precisa estar atento a cada voz, individualmente, para
entrar e responder ao jogo de cena no momento certo. A escuta implica respeito
ao lugar de fala do outro. A fala da mulher, a fala do negro e da negra, a fala
do imigrante, a fala do índio, a fala de tantas vozes diferentes.
E a polifonia também se revela como característica desse
coletivo, porque as vozes não soam sempre em uníssono, nem musicalmente, nem
metaforicamente. Responder com seu timbre e altura, para soar coletivamente, é
entender o processo musical do ator e da atriz em termos técnicos, o que não
descarta um processo de evolução do grupo nesse sentido. Mas é importante
pontuar que a polifonia do grupo se manifesta também na metáfora, no respeito
às diferenças, na valorização das diferenças, mesmo que essa ideia se transmita
através de cenas que não são fáceis de digerir ou de assistir porque agressivas
e radicais em suas ações corporais e vocais.
O design de cena de Mata teu Pai é simples e funcional, e me
remeteu à terra em muitos momentos, seja como a terra e a lama das nossas
mineradoras, seja como a falta de terra daqueles que não têm o que comer. Os
figurinos são de uma cor terra avermelhada, e somam-se a eles os objetos de
cena (sacos de terra/cimento), os instrumentos sonoros/musicais e uma lona
azul, o único elemento que colore a cena e que cria um mar em um dos momentos
do espetáculo. A terra é um elemento presente na narrativa do espetáculo
através das cores do figurino, através de porções de terra entregues aos
espectadores e por meio das ações dos personagens. Estes são seres humanos
jogados nas profundezas da terra, em uma cova nem tão profunda porque a olhos
vistos da nossa sociedade; são indivíduos arrancados de sua terra e forçados a
buscar outra terra que não lhes acolhe; e são aqueles que não têm terra porque
poucos são os donos da terra. Em diversas passagens o espetáculo se colore, ou
se suja, de terra.
Vale destacar que, em cena, está um coletivo teatral de
jovens que apontam para a renovação do teatro porto-alegrense e também do Rio
Grande do Sul, alinhados com a natureza do próprio FESTE, que busca promover o
intercâmbio e a mostra da cena de todo o estado. Que este trabalho percorra
muitas terras e que lave a alma lamacenta da nossa sociedade caduca de tanta
violência.
Crédito da foto: André Furtado
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