sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


Na encruzilhada, o que matar para sobreviver?

Carlinhos Santos


Montagem oriunda da disciplina de Fundamentos da Dramaturgia do Encenador, ministrada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com orientação do professor Henrique Saidel, Mata teu Pai, apresentada na Travessa dos Cataventos da CCMQ, nos enreda em temas urgentes e fundamentais para refletirmos sobre questões da contemporaneidade.

Essas conversas são tanto éticas quanto obviamente estéticas (impossível separar os conceitos!), tratando de ativismos, guetos, fronteiras de diálogos, porosidades de afetos para empatias e pactos de convívio diante de diásporas emergentes, migrações da nova ordem mundial que nos embretam ali na esquina e aqui na encenação, no íntimo do olhar dos seis intérpretes do Coletivo Pyton que nos atravessa, inquire, clama e denuncia acomodamentos, apagamentos e extermínios diuturnos.

Ainda que em interação com o público, a frontalidade armada para a encenação é um dado que merece reflexão. A rua hoje, na emergência das danças urbanas como recurso dramatúrgico-coreográfico, nos permite movimentações que “quebram” a estética ou a postura derivada das cortes de Luiz XIV. Mas a interação com o público existe e, claro, deve ser pontuada de forma significativa. Um exemplo: depois de uma cena de execução, a arma do crime é repassada ao público, a quem cabe responder se o extermínio é justo. Levando em conta a violência e a truculência das arminhas em punho que campeiam Brasil afora, é um gesto pra lá de mobilizador.

Pautando-se parte por memórias e por vivências pessoais e ancorada no texto homônimo de Grace Passô, nome fundamental da cena contemporânea brasileira, a peça enumera bandeiras e debates importantes diante da conjuntura brasileira: fobias e preconceitos de toda a ordem, feminicídio, falocracia, banalização da violência, clandestinidades e engrenagens que alimentam ou, se rompidas, podem desestabilizar a opressão cada vez mais cruel que mata pretos e pretas pobres e periféricos nas encruzilhadas dos asfaltos e dos morros. Mata teu Pai parece querer invocar uma nova mãe pátria, uma outra terra mater (distribuída também em punhados ao público) que nos redimensione às passagens e às possibilidades de novos convívios.

As materialidades postas em cena são também enriquecedoras. Poucos instrumentos que rendem diversificada trilha sonora e aquele mar azul sintético que flui com leveza para falar de temas nem tão suaves como as novas e ameaçadoras travessias dos novos migrantes que tentam se acomodar em nações que, outrora, ou foram seus colonizadores/opressores ou tiveram entre seus colonizadores emigrantes na mesma situação. Lembremos especialmente o caso do sul do Brasil, onde nas rebarbas do século 19 aportaram levas de barcos com italianos, alemães e outras tantos povos em busca de uma nova terra. 

Emprestar versos de Baco Exu do Blues para falar de estereótipos sobre negritude e usar o funk (som de preto, de favelado) como referência coreográfico-musical são dados que abundam a montagem de atualizações dos discursos sobre pretitute. Mas estamos, de novo, numa encruzilhada, num brete em que Exu pede suas oferendas, faz suas cobranças. Será, mesmo, que a única coisa branca que dá lucro para preto é cocaína? E, por outro lado, o funk e toda uma série de discursos ditos “periféricos” já estão virando comercial de televisão e enredo de novela das nove. Decifro-te e te devoro. 

E seguimos: como sonhar ainda os mesmos sonhos, embalados pela reiterada e ou chorada condição de escravos de Jó. Qual “caxangá” que nos cabe jogar hoje, diante de uma trajetória óbvia e posta de 500 (aqui) e tantos mais anos de branquitude? Nota de rodapé no meio do texto: encruzilhada é #, é espaço de acuamento e prisão ao mesmo tempo em que é ícone recorrente das novas e necessárias militâncias enunciadas todas pelo discurso de Mata teu Pai. Mas, insista-se, quais são as redes e os rizomas que podem aproximar os diferentes, no sentido de uma construção em pares, de não largar a mão do outro, seja preto, pardo, branco, amarelo, gay, hetero, cis, trans, ...? Quantos e quais lugares de fala são possíveis de serem construídos hoje? 

Na emergência da militância sobre questões raciais, no ativismo histórico necessário e fundamental de grupos como o Panteras Negras, nos 1960, essa era uma questão pontuada por um contexto específico. Mas, nas contemporaneidades, esses espaços precisam ser esgarçados, no sentido da inclusão de pares para os diálogos (pares multicoloridos, por favor!), para que muitos outros, todos os possíveis, possam falar sobre raça, sexualidades, conceitos e preconceitos.

Afinal, o gueto é lugar de poder mas, às vezes, é espaço de afirmação “segura” de um certo discurso de aniquilamento. Como sair do gueto, do beco que é espaço fácil para matar e pisotear seis, nove, centenas... O que precisamos, mesmo, matar para sermos felizes enquanto humanos? Ou, ainda, esta opção tão recorrente pela afirmação dos discursos de empoderamento é eminentemente inclusiva ou, por algum viés, exclui alguns (ou tantos) dispostos ao irmanamento?

Reflexões postas. Não como conclusões, mas como instâncias possíveis para novos diálogos. Para não matar possibilidades, para renascerem outros vértices, vetores e atravessamentos. E, aqui, interessa também borrar as margens, derrubar os muros, pular as cercas e reforçar as lutas. E não se trata de dizer que se sabe da dor do outro – ave Caetano: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é”. 

Ao assistir a Mata teu Pai, precisamos problematizar sobre qual é o diálogo que pode clamar pelo irmanamento em nome da humanidade que nos redima, que nos aproxime e possa nos libertar das amarras que, significativamente, estão na cena final do trabalho. Afinal, nos aniquilamos uns aos outros ou devemos matar todos os impasses, impedimentos e diferenças que atravancam a caminhada afirmativa, de empoderamento e de convívio do que resta de humanidade possível no planeta?

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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