Na encruzilhada, o que matar para sobreviver?
Carlinhos Santos
Montagem oriunda da disciplina de Fundamentos da Dramaturgia
do Encenador, ministrada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com
orientação do professor Henrique Saidel, Mata teu Pai, apresentada na Travessa
dos Cataventos da CCMQ, nos enreda em temas urgentes e fundamentais para
refletirmos sobre questões da contemporaneidade.
Essas conversas são tanto éticas quanto obviamente estéticas
(impossível separar os conceitos!), tratando de ativismos, guetos, fronteiras
de diálogos, porosidades de afetos para empatias e pactos de convívio diante de
diásporas emergentes, migrações da nova ordem mundial que nos embretam ali na
esquina e aqui na encenação, no íntimo do olhar dos seis intérpretes do Coletivo Pyton que nos atravessa,
inquire, clama e denuncia acomodamentos, apagamentos e extermínios diuturnos.
Ainda que em interação com o público, a frontalidade armada
para a encenação é um dado que merece reflexão. A rua hoje, na emergência das
danças urbanas como recurso dramatúrgico-coreográfico, nos permite
movimentações que “quebram” a estética ou a postura derivada das cortes de Luiz
XIV. Mas a interação com o público existe e, claro, deve ser pontuada de forma
significativa. Um exemplo: depois de uma cena de execução, a arma do crime é
repassada ao público, a quem cabe responder se o extermínio é justo. Levando em
conta a violência e a truculência das arminhas em punho que campeiam Brasil
afora, é um gesto pra lá de mobilizador.
Pautando-se parte por memórias e por vivências pessoais e
ancorada no texto homônimo de Grace Passô, nome fundamental da cena
contemporânea brasileira, a peça enumera bandeiras e debates importantes diante
da conjuntura brasileira: fobias e preconceitos de toda a ordem, feminicídio,
falocracia, banalização da violência, clandestinidades e engrenagens que
alimentam ou, se rompidas, podem desestabilizar a opressão cada vez mais cruel
que mata pretos e pretas pobres e periféricos nas encruzilhadas dos asfaltos e
dos morros. Mata teu Pai parece querer invocar uma nova mãe pátria, uma outra
terra mater (distribuída também em punhados ao público) que nos redimensione às
passagens e às possibilidades de novos convívios.
As materialidades postas em cena são também enriquecedoras.
Poucos instrumentos que rendem diversificada trilha sonora e aquele mar azul
sintético que flui com leveza para falar de temas nem tão suaves como as novas
e ameaçadoras travessias dos novos migrantes que tentam se acomodar em nações
que, outrora, ou foram seus colonizadores/opressores ou tiveram entre seus
colonizadores emigrantes na mesma situação. Lembremos especialmente o caso do
sul do Brasil, onde nas rebarbas do século 19 aportaram levas de barcos com
italianos, alemães e outras tantos povos em busca de uma nova terra.
Emprestar versos de Baco Exu do Blues para falar de
estereótipos sobre negritude e usar o funk (som de preto, de favelado) como
referência coreográfico-musical são dados que abundam a montagem de
atualizações dos discursos sobre pretitute. Mas estamos, de novo, numa
encruzilhada, num brete em que Exu pede suas oferendas, faz suas cobranças.
Será, mesmo, que a única coisa branca que dá lucro para preto é cocaína? E, por
outro lado, o funk e toda uma série de discursos ditos “periféricos” já estão
virando comercial de televisão e enredo de novela das nove. Decifro-te e te
devoro.
E seguimos: como sonhar ainda os mesmos sonhos, embalados pela
reiterada e ou chorada condição de escravos de Jó. Qual “caxangá” que nos cabe
jogar hoje, diante de uma trajetória óbvia e posta de 500 (aqui) e tantos mais
anos de branquitude? Nota de rodapé no meio do texto: encruzilhada é #, é
espaço de acuamento e prisão ao mesmo tempo em que é ícone recorrente das novas
e necessárias militâncias enunciadas todas pelo discurso de Mata teu Pai. Mas,
insista-se, quais são as redes e os rizomas que podem aproximar os diferentes,
no sentido de uma construção em pares, de não largar a mão do outro, seja preto,
pardo, branco, amarelo, gay, hetero, cis, trans, ...? Quantos e quais lugares
de fala são possíveis de serem construídos hoje?
Na emergência da militância sobre questões raciais, no
ativismo histórico necessário e fundamental de grupos como o Panteras Negras, nos
1960, essa era uma questão pontuada por um contexto específico. Mas, nas
contemporaneidades, esses espaços precisam ser esgarçados, no sentido da
inclusão de pares para os diálogos (pares multicoloridos, por favor!), para que
muitos outros, todos os possíveis, possam falar sobre raça, sexualidades,
conceitos e preconceitos.
Afinal, o gueto é lugar de poder mas, às vezes, é espaço de
afirmação “segura” de um certo discurso de aniquilamento. Como sair do gueto,
do beco que é espaço fácil para matar e pisotear seis, nove, centenas... O que
precisamos, mesmo, matar para sermos felizes enquanto humanos? Ou, ainda, esta
opção tão recorrente pela afirmação dos discursos de empoderamento é eminentemente
inclusiva ou, por algum viés, exclui alguns (ou tantos) dispostos ao
irmanamento?
Reflexões postas. Não como conclusões, mas como instâncias
possíveis para novos diálogos. Para não matar possibilidades, para renascerem
outros vértices, vetores e atravessamentos. E, aqui, interessa também borrar as
margens, derrubar os muros, pular as cercas e reforçar as lutas. E não se trata
de dizer que se sabe da dor do outro – ave Caetano: “cada um sabe a dor e a
delícia de ser o que se é”.
Ao assistir a Mata teu Pai, precisamos problematizar sobre
qual é o diálogo que pode clamar pelo irmanamento em nome da humanidade que nos
redima, que nos aproxime e possa nos libertar das amarras que,
significativamente, estão na cena final do trabalho. Afinal, nos aniquilamos
uns aos outros ou devemos matar todos os impasses, impedimentos e diferenças
que atravancam a caminhada afirmativa, de empoderamento e de convívio do que
resta de humanidade possível no planeta?
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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