sexta-feira, 6 de dezembro de 2019


A teimosia de ser feliz

Carlinhos Santos




A trilha sonora de Caetano Veloso instaura o mote de Teima, Filho, Teima que Dá, que o Grupo de Estudos Teatrais (GET), de Gravataí, apresentou na abertura do Feste 2019, quarta-feira à noite: existirmos, a que será que se destina? 

O destino do Severino que João Cabral de Melo Neto anunciou no já antológico poema Morte e Vida Severina foi alentar a morte que encontra pelo caminho. Aqui, o grupo readapta esta sina anunciando que o carcará segue na espreita das vítimas da seca, dos retirantes da miséria, dos acossados por tempos de intolerância, feminicídio, transfobia, homofobia e apagamento das populações periféricas menos por susto, mais por bala e vício, truculência policial e discursos de ódio alimentados por um contexto sócio-político neofascista.

A escolha dramatúrgica da montagem é constituída como uma sequência de esquetes, pontuada ou entremeada por climas sonoros. Para amarrar esses momentos, há um trabalho corporal dos intérpretes que, se namora com procedimentos de dança, carece de uma fisicalidade mais orgânica no sentido de ser mais coreografia do que interpretação de movimentos feita por atores em cena. Um aprofundamento nas diferentes possibilidades que as danças contemporâneas oferecem certamente qualificaria ainda mais o trabalho e contribuiria para o vigor da encenação. 

Mas, falando em vigor e viço, deve-se salientar que há uma afinação e uma vontade cênica dos jovens intérpretes em contar as histórias de Severinos que, ao mesmo tempo, são suas e, muito provavelmente, de muitos dos integrantes da plateia. Nesse aspecto, Teima Filho, Teima que Dá nos irmana e nos atravessa por questões urgentes que João Cabral, Graciliano Ramos e, por que não?, Guimarães Rosa nos lembravam sobre ser brasileiro, ser resistente e resiliente. Um jeito ímpar de sobreviver às inconstâncias cotidianas.

E vale apontar uma característica do GET: a inclusão de intérpretes que nos alertam sobre diversidades e diferenças. Há uma inteligente inserção desses atores em personagens e cenas vigorosas, como na sequência que sugere o extermínio de muitas desses corpos. Morte que, aqui, ressignifica e afirma a potência da vida em diferentes contextos.

Se a estrutura “jogralizada” de alguns momentos dá um refluxo à fluência da montagem, há que se afirmar que existem soluções engenhosas construídas pelo coletivo: a cena do enfrentamento entre dois personagens é um exemplo em que o corpo tem muitas possibilidades como instrumento de linguagem cênico-coreográfica. A movimentação e a dinâmica da produção de sonoridades corporais “enche” o palco e reverbera na plateia.
  
Outra questão que merece reflexão é a escolha da estética de um Nordeste seco e árido, ocre, circunstanciado, claro, ao contexto da obra de João Cabral, que é referência central da narrativa. Mas, se há uma preocupação com a atualização dos contextos sobre o Brasil, é preciso lembrar que, nos últimos 15 anos, foram implantadas políticas públicas que mudaram a paisagem rural do Nordeste. E foi justamente este eleitorado que fez uma opção de afirmação e resistência política que nos faz lembrar, como afirmou Euclides da Cunha, que o nordestino é, sobretudo, um forte.

Diante desses contextos, com inteligentes escolhas musicais como Senhor Cidadão, do antológico disco de 1972 de Tom Zé, o GET questiona com eficiência e discurso afinado os caminhos e descaminhos da cidadania em tempos instáveis. E banha-se do barro da terra para clamar, em oração, por dias melhores, para que os seres manipulados por amarras imaginárias libertem-se dos tantos jugos que os condenam. Nesse sentido, a montagem constrói um discurso estético, cênico e coreográfico que nos afirma que, sim, precisamos seguir tentando. Pois dá. Dará! 

Crédito da foto: Carolina Zogbi






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