A teimosia de ser feliz
Carlinhos Santos
A trilha sonora de Caetano Veloso instaura o mote de Teima,
Filho, Teima que Dá, que o Grupo de Estudos Teatrais (GET), de Gravataí,
apresentou na abertura do Feste 2019, quarta-feira à noite: existirmos, a que
será que se destina?
O destino do Severino que João Cabral de Melo Neto anunciou
no já antológico poema Morte e Vida Severina foi alentar a morte que encontra
pelo caminho. Aqui, o grupo readapta esta sina anunciando que o carcará segue
na espreita das vítimas da seca, dos retirantes da miséria, dos acossados por
tempos de intolerância, feminicídio, transfobia, homofobia e apagamento das
populações periféricas menos por susto, mais por bala e vício, truculência
policial e discursos de ódio alimentados por um contexto sócio-político
neofascista.
A escolha dramatúrgica da montagem é constituída como uma
sequência de esquetes, pontuada ou entremeada por climas sonoros. Para amarrar
esses momentos, há um trabalho corporal dos intérpretes que, se namora com
procedimentos de dança, carece de uma fisicalidade mais orgânica no sentido de
ser mais coreografia do que interpretação de movimentos feita por atores em
cena. Um aprofundamento nas diferentes possibilidades que as danças
contemporâneas oferecem certamente qualificaria ainda mais o trabalho e contribuiria
para o vigor da encenação.
Mas, falando em vigor e viço, deve-se salientar que há uma afinação
e uma vontade cênica dos jovens intérpretes em contar as histórias de Severinos
que, ao mesmo tempo, são suas e, muito provavelmente, de muitos dos integrantes
da plateia. Nesse aspecto, Teima Filho, Teima que Dá nos irmana e nos atravessa
por questões urgentes que João Cabral, Graciliano Ramos e, por que não?,
Guimarães Rosa nos lembravam sobre ser brasileiro, ser resistente e resiliente.
Um jeito ímpar de sobreviver às inconstâncias cotidianas.
E vale apontar uma característica do GET: a inclusão de intérpretes
que nos alertam sobre diversidades e diferenças. Há uma inteligente inserção
desses atores em personagens e cenas vigorosas, como na sequência que sugere o
extermínio de muitas desses corpos. Morte que, aqui, ressignifica e afirma a
potência da vida em diferentes contextos.
Se a estrutura “jogralizada” de alguns momentos dá um
refluxo à fluência da montagem, há que se afirmar que existem soluções
engenhosas construídas pelo coletivo: a cena do enfrentamento entre dois
personagens é um exemplo em que o corpo tem muitas possibilidades como
instrumento de linguagem cênico-coreográfica. A movimentação e a dinâmica da
produção de sonoridades corporais “enche” o palco e reverbera na plateia.
Outra questão que merece reflexão é a escolha da estética de
um Nordeste seco e árido, ocre, circunstanciado, claro, ao contexto da obra de
João Cabral, que é referência central da narrativa. Mas, se há uma preocupação
com a atualização dos contextos sobre o Brasil, é preciso lembrar que, nos
últimos 15 anos, foram implantadas políticas públicas que mudaram a paisagem
rural do Nordeste. E foi justamente este eleitorado que fez uma opção de
afirmação e resistência política que nos faz lembrar, como afirmou Euclides da
Cunha, que o nordestino é, sobretudo, um forte.
Diante desses contextos, com inteligentes escolhas musicais
como Senhor Cidadão, do antológico disco de 1972 de Tom Zé, o GET questiona com
eficiência e discurso afinado os caminhos e descaminhos da cidadania em tempos
instáveis. E banha-se do barro da terra para clamar, em oração, por dias
melhores, para que os seres manipulados por amarras imaginárias libertem-se dos
tantos jugos que os condenam. Nesse sentido, a montagem constrói um discurso
estético, cênico e coreográfico que nos afirma que, sim, precisamos seguir
tentando. Pois dá. Dará!
Crédito da foto: Carolina Zogbi
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