Dois Perdidos Numa Noite Suja
Carlinhos Santos
Em Sobre o Autoritarismo Brasileiro, Lilia Moritz Schwarcz
mostra como os donos de escravos faziam questão de registrar em fotografias as suas
“propriedades” vestidas de ternos ou casacas, mas de pés descalços, sem
sapatos. Uma distinção perversa da afirmação histórica sobre a condição da
exclusão no Brasil. Calçar um sapato é, pois, um dilema social e moral do anti-herói
Paco de Dois Perdidos numa Noite Suja, que o grupo Loucos de Palco, de Santa
Rosa, mostrou no FESTE quinta-feira à noite.
A remontagem de um dos grandes textos de Plínio Marcos atualiza
discussões sobre marginalidade social, autoritarismo e miséria que marcam
historicamente a condição de grande parte da sociedade brasileira. O realismo
como opção estética e dramatúrgica do grupo reafirma a condição sub-humana que
habita quartos, conjugados, lajes, barracos, puxadinhos e arremedos de casas periféricas
Brasil afora.
Mas, para além dessa espécie de denúncia sobre questões
sociais, a montagem tem a habilidade de nos permitir, contemporaneamente,
outras leituras para um texto que remonta a meados dos anos 1960. Daí a
importância de revisitarmos os clássicos de forma recorrente. Se, naquela
época, Tonho sonhava ser funcionário público e ou bancário, o que nos resta
hoje diante dos desmontes promovidos por um contexto político que vem anulando,
dia e noite, as conquistas sociais e as garantias trabalhistas?
O enfrentamento dos dois personagens traz nuances também
sobre questões afetivas. Afinal, tantas alusões à sexualidade de um e outro,
tanto embate neste contexto, talvez signifique vontades, anseios e/ou desejos
escondidos entre os caixotes reaproveitados que fazem as vezes de armários
improvisados. E, como sempre, a pulsão do desejo desencadeia, com frequência,
tensões que transitam entre ojeriza e jocosidade, nuances de um desejo quiçá
reprimido. Uma tensão que atravessa os diálogos, os enfrentamentos, os toques e
as repulsões entre as duas figuras que se enredam acossadas por memórias,
acusações e expressões clichês recorrentes e preconceituosas. Qual o tanto de
amor e a medida de ódio que fazem Paco e Tonho não romperem suas relações na
proporção borrada da masculinidade mediada pelas acusações recíprocas? Que
virilidade está em jogo e é questionada o tempo todo?
Essas tensões e sutilezas dos personagens em seus dilemas são
construídas de forma segura pelos dois intérpretes e pela direção. O rádio
cenográfico contribui para pontuar os climas das questões que mediam a
existência daquelas vidas miseráveis. Além de Cartola pedindo “deixe-me ir,
preciso andar” (mas com que sapato, em qual Brasil?!), há o hit Tragédia no Fundo do Mar, dos Originais do Samba, que pode servir de alegoria para uma
espécie de antropofagia sociocultural perpassada pelo jeitinho brasileiro de que
é preciso se dar bem a despeito do outro. Mas isso é tão cruel que, às vezes,
Tonho e Paco parecem pedir emprestada a dor um do outro para tentar fugir desse
egoísmo patológico que os habita e assim emergir da desumanidade na qual estão
submersos.
Nessa tragédia sobre sobreviver em tempos de quase barbárie,
Dois Perdidos numa Noite Suja nos alerta sobre a morte do humano e o desmonte
dos valores éticos e sociais que ainda poderiam nos redimir enquanto sociedade
que quer e precisa botar seu bloco na rua (aliás, a escolha do hit de Sérgio
Sampaio para o desfecho da trama é um achado). A peça parece nos gritar sobre que gentileza
ainda pode nos irmanar para seguir em frente, para nos redimir. Ou nos avisa:
rir do quem, diante da morte diária da ética de mito da cordialidade social
brasileira?
Se rimos da morte que nos visita cotidianamente, quando
encontraremos, como Paco tanto deseja, uma flauta encantada que nos abra
portais para novos fluxos da vida? Nessa longa jornada noite adentro, a arte
talvez nos resgate da tragédia cotidiana em nome de uma sobrevivência digna.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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