Estado de Alerta
Viviane Juguero
O espetáculo teatral Nosso Estado de Sítio, criado com base
no texto Estado de Sítio, de Albert Camus, foi apresentado na noite do último
sábado (7/12/2019), dentro do FESTE. O trabalho é fruto de disciplina
desenvolvida na Faculdade de Teatro da Universidade Estadual do Rio Grande do
Sul (UERGS), ministrada pelo professor Marcelo Ádams, que também assina a
direção e atua nesta peça que, como uma realização da UAU (União de Artistas da UERGS), segue sua jornada de apresentações fora da Universidade.
O texto original de Camus estreou em 1948 e tinha o objetivo
de questionar a situação política da Espanha de então, que sofria os ecos da
Segunda Guerra Mundial, extinguida em 1945, e da Guerra Civil Espanhola,
finalizada em 1939, a qual havia polarizado o país em posicionamentos
extremistas. Neste sentido, Camus utiliza a expressão “estado de sítio” como
uma alusão ao fato de os direitos individuais estarem sendo violados pelo
posicionamento autoritário do Estado. Cumpre salientar, no entanto que,
legalmente, o “estado de sítio” ocorre quando, devido a uma questão urgente de
desorganização social, como uma guerra, por exemplo, os poderes legislativo e
judiciário são suspensos, a princípio, por trinta dias, pelo chefe do poder
executivo. No caso do Brasil, o presidente, para solicitar essa ação extrema
precisa ter a aprovação do Congresso Nacional.
No enredo da peça de Camus, um governador corrupto comanda
um local onde imperam a desigualdade e a subordinação imposta repressivamente.
Com a chegada de um cometa, a Peste, personalizada em um personagem masculino
(que é assessorada pela personagem feminina Morte), toma o poder já corrompido
e amplia a sua atuação autoritária, decidindo, arbitrariamente, quem deve
morrer ou viver, além de impor modos de vida e valores que regem uma vida
burocratizada. Sobre esse aspecto, Camus cria uma narrativa na qual o amor
entre Diego e Vitória é progressivamente dilacerado pela impossibilidade de
amar em um ambiente desprovido de afeto.
No que concerne à montagem da UAU, o grupo partiu do texto
de Camus devido ao fato de reconhecer no mesmo situações e questionamentos que
estão presentes na política brasileira da atualidade. Neste sentido, a equipe
artística inseriu, de forma crítica, diversos elementos da realidade
contemporânea, como o gesto que reverencia a utilização das armas, propagado
pelo atual presidente brasileiro e seus correligionários, além de relacionar
sua postura autoritária e violenta à conduta nazista de Hitler. O grupo
denuncia ainda a repressão policial sofrida em distintas manifestações da
América Latina.
A encenação de Nosso Estado de Sítio inicia com artistas
espalhados pelo teatro, vestindo um padronizado macacão azul que os caracteriza
como operários da arte. A sonoridade de uma guitarra distorcida pontua um
discurso que versa sobre o papel questionador da arte. A utilização da plateia
como palco acontece em alguns outros momentos da peça, resultando na percepção
de que o público integra esse coro e não está alheio às situações denunciadas
no enredo.
A movimentação é muitas vezes coreografada e utiliza de
distintos níveis e profundidades, associando a beleza da composição imagética a
signos que remetem à subordinação e desumanização dos corpos e relações, tais
como a padronização automatizada de alguns movimentos e sons, além de
convulsões, corpos que representam pilhas de cadáveres, sombras que amplificam
as dimensões do poder e do medo, além de referências sutis a posturas críticas
de artistas como Bertolt Brecht, que surge não somente em elementos de ruptura
presentes na montagem como na referência ao famoso grito mudo da personagem Mãe
Coragem, quando ela se depara com a morte do filho.
A encenação demarca ainda uma conexão entre o poder
impositivo do Estado e da Igreja, posto que a Peste emite suas falas de um
púlpito, em tom dogmático sacerdotal e com a voz amplificada por um microfone,
o que sublinha o fato de que a sua voz é imposta por meio da força. A relação,
além de historicamente respaldada, denuncia que o pensamento dogmático que
impera no sistema patriarcal constitui-se por meio de uma base emocional calcada
em verdades absolutas e não no pensamento reflexivo que, necessariamente, precisa
considerar a complexidade de nossa constituição social. Neste sentido, vale
refletir sobre o fato de que os textos são fruto de seu momento histórico, e a
obra de Camus apresenta diversos signos que ratificam a cultura machista de sua
época, seja pela posição subalterna da mulher, seja pela linguagem utilizada,
como, por exemplo, a utilização do termo “Homem”, ao invés de “Humanidade”.
Sobre esse aspecto, a montagem do grupo UAU optou por não atualizar o seu
discurso sobre esta importante temática do século XXI, discutida, amplamente,
em diversos países. De qualquer modo, a questão de gênero não passou sem ser
discutida, devido à presença de uma cena que remete ao amor homossexual
masculino.
Nosso Estado de Sítio possui muitas camadas de significação,
trazendo diversas chaves que fazem refletir sobre o complexo caminho histórico
que nos trouxe à situação atual, convidando à reflexão e à ação. Uma das mais
potentes significações está na própria montagem, isto é, jovens artistas
engajados em uma montagem artística socialmente comprometida. A própria postura
do professor, ao se colocar como um colega cúmplice em cena, possibilita a
percepção de que a ação crítica solicita a solidariedade e o afeto para que a
transformação ocorra em cada camada das estruturas sociais. Este posicionamento
está revelado na cena em que as personagens se dão as mãos, em uma corrente que
forma o símbolo do infinito, o que alerta sobre a complexidade das bases
afetivo-racionais que sustentam esses sistemas e sobre a necessidade de
transformá-las desde sua interioridade.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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