Nosso Estado de Sítio propõe reflexão acerca das questões contemporâneas
Cristiano Goldschmidt
Na noite do último sábado, 7 de dezembro, penúltimo dia do
4º Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE), o Teatro Bruno
Kiefer recebeu a montagem de Nosso Estado de Sítio, que leva a assinatura de
Marcelo Ádams na direção e no roteiro final. O espetáculo foi criado no Curso
de Teatro – Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs),
a partir do texto Estado de Sítio, do dramaturgo argelino Albert Camus. Segundo
o grupo União de Artistas da Uergs (UAU), a partir desse mote, foi desenvolvida
uma dramaturgia que buscou atualizar algumas questões candentes no Brasil do
século XXI
A montagem do Grupo UAU, de Montenegro, se propôs a levar ao
palco dois eventos consecutivos: a aproximação de um cometa, que ameaça de
extinção a humanidade, e a chegada da Peste, causada pela passagem do
gigantesco corpo celeste. Assim, o medo e o obscurantismo, associados a um
pretenso fim do mundo, fazem com que instituições tradicionais e conservadoras
reafirmem posições que ameaçam a liberdade, a individualidade e a diversidade.
A mensagem passada pelo grupo é a de que a chegada da Peste metaforiza os
vários inimigos dos direitos humanos, aproximando a poética teatral do atual
estado político convulsionado em diversos países, inclusive no Brasil.
O cenário é composto por poucos elementos, assim como são
poucos os adereços, alguns deles usados nas cenas iniciais, como as caixas
plásticas de supermercado para armazenar hortifrúti, sacolas plásticas e
algumas laranjas que possibilitam um bonito jogo de cena − para e entre os
atores. A iluminação, de Bruna Johann, desempenha um papel importante, dando
sentido à ausência de um cenário mais elaborado. É a iluminação que causa o
efeito necessário à composição cênica e aos deslocamentos dos atores, contribuindo
para que se crie uma atmosfera necessária aos desdobramentos do espetáculo,
pautado, segundo Marcelo Ádams, pelo princípio da coralidade e pelo
investimento na pesquisa da fisicalidade atorial, que não se propõe a
reproduzir ações realistas.
A direção de Marcelo Ádams acerta desde o início ao colocar
os nove atores e atrizes aguardando o público espalhados pelo teatro, no palco
e nas laterais da plateia. O impacto visual inicial é seguido pelo impacto da
dramaturgia assim que o espetáculo começa. O figurino, mais um acerto do grupo,
se resume aos macacões azuis característicos da classe operária, e fazem
referência à criação do encenador russo Vsévolod Meyerhold, transformando
atores e atrizes em operários da arte. A estética do figurino acaba por
conferir certa leveza à montagem, minimizando um pouco o sentimento de agonia
causado pelo texto, que deixa o espectador em certo estado de aflição. Aflição que
é potencializada pela trilha sonora, executada ao vivo, e que pontua os
acontecimentos. Rodrigo Waschburger, além de bom ator, é o responsável por puxar
a trilha sonora com solos de guitarra.
Marcelo Ádams é um ator e diretor experiente. Homem de
teatro, com longa trajetória nos palcos gaúchos, sua atividade docente na
universidade também aparece de alguma forma em cena. Seus textos e montagens,
de autoria própria ou adaptações, apontam para um diretor e dramaturgo atento
ao conjunto do que é levado ao palco em suas produções. Demonstra preocupação
social, reafirmando sua vocação para um teatro com acentuado discurso político,
provocando no público reflexões acerca das questões contemporâneas.
Em Nosso Estado de Sítio esse discurso político está
presente do início ao fim do espetáculo. Com o proclamado estado de sítio,
imposto na calada da noite, as ações se dividem, por um lado, pela
possibilidade de organização e de resistência dos cidadãos e, por outro, pela
imposição da necessidade de um povo obediente e transformado em máquinas de
rendimentos; um povo que entenda principalmente que o essencial do seu papel na
sociedade não é compreender e questionar o sistema opressor, mas executar o que
este lhe impõe.
A contemporaneidade do espetáculo está presente o tempo todo
no discurso do opressor. Um opressor cujo discurso político defende a
deportação dos indesejáveis. Um opressor que tem horror a esse país onde as
pessoas pretendem ser livres. Um opressor que defende a necessidade de tudo ser
privatizado, a necessidade de separar os brancos dos pretos, os ricos dos
pobres, os que mandam dos que obedecem. Um opressor que defende que quanto mais
suprimirem os direitos, melhor será a vida do povo. Que defende a ideia de que
ninguém pode ser feliz sem fazer mal aos outros. Um opressor cujos discursos e
ações dilaceram as poucas esperanças que sobram de um mundo melhor e mais justo.
Em Nosso Estado de Sítio, o elenco – formado por Bruno
Marques, Charlene Uez, Felipe Vigel, Jocteel Salles, Lucas Peiter, Marcelo
Ádams, Paula Silveira, Rafaela Fischer, Rodrigo Waschburger e Savana Flores –
está inteiro no palco e demonstra afinidade, tem noção do espaço e domina a
marcação das cenas. Percebe-se também um domínio total do texto. Estas e outras
qualidades são o resultado de uma harmonia no trabalho do grupo, que prioriza o
estudo e o preparo constantes – o que contribui para que a peça tenha fluidez. Não
tenho dúvidas de que esse conjunto de atributos é o responsável por ter levado
o espetáculo a diversas cidades, amealhando, por onde passou, importantes
prêmios e reconhecimentos, como a sua participação, em janeiro de 2019, na
mostra a ponte - Cena do Teatro Universitário, promovida pelo Itaú Cultural, em
São Paulo, sendo o único espetáculo gaúcho a ser selecionado para o evento.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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