A passagem de um cometa criativo
Pedro Delgado
Dando continuidade à programação do 4° FESTE, na noite de 7
de dezembro foi a vez de o coletivo União de Artistas da Uergs (UAU) pisar no
palco do Teatro Bruno Kiefer para apresentar Nosso Estado de Sítio. A peça tem direção de Marcelo Ádams e
interpretação de Bruno Marques, Charlene Uez, Felipe Vigel, Jocteel Salles,
Lucas Peiter, Marcelo Ádams, Paula Silveira, Rafaela Fischer, Rodrigo
Waschburger e Savana Flores.
A dramaturgia, que tem origem na obra O Estado de Sítio, de
Albert Camus, se desenvolve a partir de dois eventos consecutivos que alteram
as perspectivas de vida de um grupo de pessoas. A passagem de um cometa e o
surgimento de uma peste são os fenômenos que inspiraram Camus, em 1948, a escrever
sobre uma pequena aldeia de pescadores que presenciou tais fenômenos. O autor francês
pretendia, com seu Estado de Sítio, retratar de forma metafórica a turbulência
espanhola da primeira metade do século XX. Camus é só o ponto de partida para a
criação da dramaturgia coletiva de Nosso Estado de Sítio, criação dos alunos do
curso de Teatro: Licenciatura da Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do
Sul).
A peça de Ádams tem início com um surpreendente arranjo
performativo, em que os atores executam uma coreografia ao mesmo tempo que tocam
instrumentos musicais e tiram sons percussivos de diversos objetos, como
sacolas plásticas, por exemplo. Os
primeiros dos 60 minutos da encenação têm ritmo leve, para em seguida se
aprofundarem e constituírem um drama em que se sucedem cenas de certo
extravasamento provocadas pela passagem de um cometa. A partir desse fenômeno
são encenadas situações polêmicas e difíceis na vida cotidiana de um grupo de
operários, cujas vidas são ameaçadas por uma nova peste.
O UAU vai buscar equivalências nos escritos do autor argelino
para colocar em cena a situação política atual do Brasil, de modo que a peste que
aflige a população de Camus é posta em cena, metaforicamente, como a ameaça do
totalitarismo, a retirada de direitos sociais adquiridos, o recuo nas políticas
de direitos humanos e o não reconhecimento da existência de diversidades. Com o
objetivo também de construir uma estética diferenciada, o grupo vai ao encontro
de outras diretrizes, como o princípio da oralidade e o investimento na
pesquisa da fisicalidade atorial, metodologia do trabalho do ator que busca evitar
a reprodução das ações realistas, apostando, principalmente, na ocupação do
espaço cênico com poucos elementos cenográficos.
Dessa forma, Marcelo Ádams, que também é responsável pelos
ajustes finais da dramaturgia, concebe um espetáculo com princípios bem
definidos. Reserva uma área do palco para a execução de parte da trilha, onde
se observam uma guitarra e alguns objetos através dos quais o elenco produz
sonoridades que ajudam a compor a estética e a dramaturgia das cenas. Para os
figurinos, o diretor elegeu macacões azuis utilizados por operários de fábricas
que, ao mesmo tempo em que enriquecem e potencializam a temática da peça,
também transformam o elenco em operários da arte, o que contribui enormemente
para a atmosfera e a concretude sensorial e imagética dos corpos e da
dramaturgia da cena.
A direção de Ádams aposta, prioritariamente, na precisão e na
criatividade corporal dos atores, que reinventam seus corpos construindo belas
e dinâmicas imagens. A utilização do espaço cênico provoca a sensação de que o
elenco se multiplica. Seus corpos estão em estado de devir máquina permanente,
esses mesmos corpos também representam uma sociedade operária amedrontada e
oprimida, que ora conduz o espectador a estados de indignação, ora, de forma
quase paradoxal, devido à sátira feita ao sistema, provoca risos frouxos no espectador
e até certo relaxamento dos corpos nas cadeiras. Em diversos momentos os atores
expandem o espaço dramático de forma que o público parece fazer parte do grupo
de operários.
Destaco aqui, como exemplo, o momento em que dois personagens se
colocam em meio ao público e dali se dirigem a ele como se falassem a uma massa
de operários. O roteiro de Ádams ousa
desse modo ampliar a discussão sobre os desmandos da atual situação política
brasileira, apresentando situações-limite e discutindo o atual contexto de tais
personagens. Com isso, Nosso Estado de Sítio denuncia os preconceitos
existentes ao mesmo tempo em que proporciona um espetáculo que assume
perspectivas estéticas atravessadas pelo humor, o que, de alguma forma, agrada
ao público.
O espetáculo, de forma geral, é bem concebido e muito bem
executado enquanto ocupação espacial, construção imagética e dramaturgia
corporal. Entretanto, carece de um pouco mais de atenção na colocação textual
da maioria dos atores. Percebe-se um elenco muito bem preparado corporalmente,
mas com algumas dificuldades na pronúncia e na interpretação dos textos
falados.
De qualquer modo, levando-se em conta que se trata de um
elenco bastante jovem, é certo que Nosso Estado de Sítio é de grande
importância para o cenário das produções teatrais gaúchas, sobretudo, pela
inteligência criativa, pela expressividade e pela dramaturgia das cenas. Bem
como pela importância crítica sobre o atual cenário político brasileiro. Parabéns
ao grupo União de Artistas da Uergs e vida longa ao Nosso Estado de Sítio!
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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