Cavaleiros da cumplicidade
Viviane Juguero
A peça teatral Dom Quixote, criada com base em texto de
Rafael Barcellos, uma adaptação do clássico homônimo da literatura espanhola,
foi apresentada na tarde desta sexta-feira (6/12/2019) dentro do FESTE. Tive a
oportunidade de assistir à montagem na semana passada, durante o Festival de
Erechim, que reuniu os espetáculos vencedores de diversos festivais do Estado
para realizar uma etapa final competitiva. Na ocasião, o trabalho do Loucos de Palco, que concorria como espetáculo infantil, foi indicado nas categorias de
trilha musical, cenografia, figurino, ator coadjuvante, para Anderson Farias,
direção e espetáculo, além de Melhor Caracterização e Melhor ator, para Jadson
Silva, sendo as duas últimas contempladas com o prêmio. Naquele festival, eu
estava trabalhando na comissão avaliadora, e é uma grata surpresa perceber que
a equipe levou em consideração nossos comentários e caminha na direção de
ampliar potencialidades e sanar algumas dificuldades da peça.
A peça coloca em cena os emblemáticos personagens Dom
Quixote e Sancho Pança, criados no século XVI pelo espanhol Miguel de Cervantes
e mantidos atuantes no universo artístico até à atualidade, seja pela potência
de sua obra original, seja pelos numerosos trabalhos inspirados na mesma, em
criações teatrais, audiovisuais, de artes plásticas ou quadrinhos.
O espetáculo teatral apresentado no FESTE é destinado a
crianças a partir de oito anos, sem deixar de agradar às pessoas adultas, como
se espera de bons trabalhos infantis. A linguagem é adequada ao público alvo e
possibilita que as crianças dialoguem com a obra sem serem subestimadas ou
confrontadas com abstrações e formulações inacessíveis ao pensamento infantil.
É inegável o mérito do trabalho de colocar em cena personagens emblemáticos da
literatura universal de forma acessível e envolvente, o que contribui tanto com
a fruição da obra teatral quanto pode instigar o interesse pela leitura. Como
os artistas declararam ser esta uma de suas intenções, é curioso perceber que,
no recorte que fizeram do imenso romance de Dom Quixote, optaram por não
enfocar o fato de que o personagem enlouquece ao fantasiar e ter alucinações
devido à excessiva leitura de romances de cavalaria.
Na dramaturgia do trabalho aqui enfocado, Barcellos optou
por apresentar as peculiaridades das personagens, sem priorizar o
desenvolvimento das situações, as quais emergem mais como pretextos para a
manifestação das extravagâncias e trapalhadas de Quixote e da singeleza de
Sancho Pança do que como encadeamentos dramáticos que oportunizam o
desenvolvimento da ação. Em cena, Dom Quixote e Sancho Pança chegam a um
povoado formado pelas pessoas do público que, por vezes, são integradas à cena,
seja como um gigante que se converte em aldeão, como um notável cavaleiro ou
como a doce Dulcineia.
Ressalto a feliz relação estabelecida com a cultura gaúcha,
como uma referência natural e autêntica, sem a utilização de estereótipos. Essa
alusão é reconhecível na estética das personagens e da cena, no sotaque das
falas e no estilo das composições musicais originais da peça, como é o caso da
canção-tema, cujo estilo musical caracteriza-se como um tipo de bugio. Sobre
esse aspecto, a orquestração gravada apresenta timbres que destoam dos demais
elementos estéticos, pois os sintetizadores não dialogam com a beleza rústica
presente nos demais elementos. No que concerne às músicas instrumentais
renascentistas utilizadas, como foram gravadas em violão contribuem com uma
percepção ampliada, pois remetem tanto às violas campeiras e à construção
artesanal dos demais elementos da cena quanto à época em que a obra original
foi criada.
A opção da encenação se constituir em formato de arena
possibilita que o trabalho possa ser apresentado em espaços alternativos e resulta
em uma ambientação que propicia maior intimidade entre público e cena. No
entanto, embora os artistas tenham construído uma movimentação adequada à
concepção, por vezes, ainda não contemplam a arena quando se mantém imóveis
para a execução das canções. Acredito que assim que os artistas estiverem mais
à vontade com a execução musical poderão ampliar o jogo e a dinâmica dessas
cenas, como fazem nos demais momentos. Nesse sentido, vale salientar que a
execução das músicas precisa ser bastante aprimorada, seja no que concerne ao
encadeamento entre harmonia e melodia, ou mesmo na concepção dos arranjos, seja
no que diz respeito à afinação, projeção e colocação vocal. Percebe-se que o
grupo está atento a essa questão, pois são reconhecidos avanços desde a última
apresentação que assisti, realizada há tão pouco tempo, o que me faz crer que
logo esse aspecto estará bastante aprimorado. Cumpre enfatizar que as
canções são muito interessantes e contribuem na construção da narrativa,
constituindo-se como ação e não como mero elemento ilustrativo.
A caracterização das personagens está muito bem-feita, desde
figurinos, maquiagens e adereços até a interpretação dessas duas figuras
carismáticas. Além disso, a amizade entre Dom Quixote e Sancho Pança é muito
valorizada na peça, o que deve ecoar fundo na subjetividade infantil. Em tempos
em que nosso ambiente social está tão repleto de discursos desesperançosos e
negativos, o reconhecimento da cumplicidade e da generosidade entre esses
cavaleiros, realizada de forma artisticamente envolvente e pedagogicamente
responsável, alegra o presente e projeta uma generosa luz no amanhã.
Crédito da foto: Giuliano Bueno
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