terça-feira, 10 de dezembro de 2019


Cavaleiros da cumplicidade

Viviane Juguero
 

A peça teatral Dom Quixote, criada com base em texto de Rafael Barcellos, uma adaptação do clássico homônimo da literatura espanhola, foi apresentada na tarde desta sexta-feira (6/12/2019) dentro do FESTE. Tive a oportunidade de assistir à montagem na semana passada, durante o Festival de Erechim, que reuniu os espetáculos vencedores de diversos festivais do Estado para realizar uma etapa final competitiva. Na ocasião, o trabalho do Loucos de Palco, que concorria como espetáculo infantil, foi indicado nas categorias de trilha musical, cenografia, figurino, ator coadjuvante, para Anderson Farias, direção e espetáculo, além de Melhor Caracterização e Melhor ator, para Jadson Silva, sendo as duas últimas contempladas com o prêmio. Naquele festival, eu estava trabalhando na comissão avaliadora, e é uma grata surpresa perceber que a equipe levou em consideração nossos comentários e caminha na direção de ampliar potencialidades e sanar algumas dificuldades da peça.

A peça coloca em cena os emblemáticos personagens Dom Quixote e Sancho Pança, criados no século XVI pelo espanhol Miguel de Cervantes e mantidos atuantes no universo artístico até à atualidade, seja pela potência de sua obra original, seja pelos numerosos trabalhos inspirados na mesma, em criações teatrais, audiovisuais, de artes plásticas ou quadrinhos.

O espetáculo teatral apresentado no FESTE é destinado a crianças a partir de oito anos, sem deixar de agradar às pessoas adultas, como se espera de bons trabalhos infantis. A linguagem é adequada ao público alvo e possibilita que as crianças dialoguem com a obra sem serem subestimadas ou confrontadas com abstrações e formulações inacessíveis ao pensamento infantil. É inegável o mérito do trabalho de colocar em cena personagens emblemáticos da literatura universal de forma acessível e envolvente, o que contribui tanto com a fruição da obra teatral quanto pode instigar o interesse pela leitura. Como os artistas declararam ser esta uma de suas intenções, é curioso perceber que, no recorte que fizeram do imenso romance de Dom Quixote, optaram por não enfocar o fato de que o personagem enlouquece ao fantasiar e ter alucinações devido à excessiva leitura de romances de cavalaria. 

Na dramaturgia do trabalho aqui enfocado, Barcellos optou por apresentar as peculiaridades das personagens, sem priorizar o desenvolvimento das situações, as quais emergem mais como pretextos para a manifestação das extravagâncias e trapalhadas de Quixote e da singeleza de Sancho Pança do que como encadeamentos dramáticos que oportunizam o desenvolvimento da ação. Em cena, Dom Quixote e Sancho Pança chegam a um povoado formado pelas pessoas do público que, por vezes, são integradas à cena, seja como um gigante que se converte em aldeão, como um notável cavaleiro ou como a doce Dulcineia.

Ressalto a feliz relação estabelecida com a cultura gaúcha, como uma referência natural e autêntica, sem a utilização de estereótipos. Essa alusão é reconhecível na estética das personagens e da cena, no sotaque das falas e no estilo das composições musicais originais da peça, como é o caso da canção-tema, cujo estilo musical caracteriza-se como um tipo de bugio. Sobre esse aspecto, a orquestração gravada apresenta timbres que destoam dos demais elementos estéticos, pois os sintetizadores não dialogam com a beleza rústica presente nos demais elementos. No que concerne às músicas instrumentais renascentistas utilizadas, como foram gravadas em violão contribuem com uma percepção ampliada, pois remetem tanto às violas campeiras e à construção artesanal dos demais elementos da cena quanto à época em que a obra original foi criada. 

A opção da encenação se constituir em formato de arena possibilita que o trabalho possa ser apresentado em espaços alternativos e resulta em uma ambientação que propicia maior intimidade entre público e cena. No entanto, embora os artistas tenham construído uma movimentação adequada à concepção, por vezes, ainda não contemplam a arena quando se mantém imóveis para a execução das canções. Acredito que assim que os artistas estiverem mais à vontade com a execução musical poderão ampliar o jogo e a dinâmica dessas cenas, como fazem nos demais momentos. Nesse sentido, vale salientar que a execução das músicas precisa ser bastante aprimorada, seja no que concerne ao encadeamento entre harmonia e melodia, ou mesmo na concepção dos arranjos, seja no que diz respeito à afinação, projeção e colocação vocal. Percebe-se que o grupo está atento a essa questão, pois são reconhecidos avanços desde a última apresentação que assisti, realizada há tão pouco tempo, o que me faz crer que logo esse aspecto estará bastante aprimorado. Cumpre enfatizar que as canções são muito interessantes e contribuem na construção da narrativa, constituindo-se como ação e não como mero elemento ilustrativo. 

A caracterização das personagens está muito bem-feita, desde figurinos, maquiagens e adereços até a interpretação dessas duas figuras carismáticas. Além disso, a amizade entre Dom Quixote e Sancho Pança é muito valorizada na peça, o que deve ecoar fundo na subjetividade infantil. Em tempos em que nosso ambiente social está tão repleto de discursos desesperançosos e negativos, o reconhecimento da cumplicidade e da generosidade entre esses cavaleiros, realizada de forma artisticamente envolvente e pedagogicamente responsável, alegra o presente e projeta uma generosa luz no amanhã.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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