sábado, 14 de dezembro de 2019



A vertigem de Nelson Rodrigues

Nei Charão


Os Sete Gatinhos, escrita em 1958 por Nelson Rodrigues, talvez seja sua narrativa mais didática para discursar contra a hipocrisia social e relacional familiar, num país que, do ponto de vista das perspectivas teóricas sobre família, ainda padece por não compreender sua arqueologia simbólica, muito provavelmente por seguir em busca de um “modelo”.

O diretor Helquer Paez e a Cia Retalhos de Teatro (Santa Maria) investiram em uma montagem que, em primeiro lugar, produz uma quebra histórica na cenografia das montagens dos textos de Nelson Rodrigues. O objeto central (uma mesa...) assume múltiplas formas de utilização que vão do óbvio a figuras estéticas que produzem extrema mobilidade, contribuindo e auxiliando na condução emocional da cena até o momento que antecede o ápice, servindo inclusive para acomodar adereços e figurinos. Fazia muito tempo que não tinha o prazer de assistir a uma proposta cenográfica que oferecesse tamanho envolvimento e funcionalidade à cena. Parabéns!

Helquer Paez é daqueles diretores que agradam justamente por em seu processo criativo não abrir mão das sugestões que o autor propõe para condução da obra. Essa atitude artística ilumina a sua tarefa como encenador justamente por conseguir, desta forma, apresentar seus trabalhos com extremo vigor, produzindo sua própria estética sem pirotecnias, metamorfoses ou rasgos intelectuais, mantendo a visão do autor. Parece-me que uma das balizas criativas deste diretor seja a sua generosidade e empatia com o argumento (texto a ser encenado) – é uma marca de seu trabalho.

O elenco, oriundo da UFSM e sua escola dramática, conduz a cena no ritmo vertiginoso que caracteriza o texto de Nelson Rodrigues, seu contorno diletante sobre um Brasil que teima em buscar “soluções” para os seus paradigmas sociais a partir de uma aparente violência temática. Percebe-se um grupo de atores dispostos a uma construção da personagem, do que chamo de identificação entre seus pares. Muito possivelmente, seja esta uma das funções da assistência de direção, conduzida por Alexia Karla da Silva.

A cena que mostra a virgindade como único meio de redenção e de ascensão moral e social fica estabelecida com a providencia e a força corporal deste elenco, sem sobressaltos interpretativos, equilibrada por uma sagacidade desconcertante.Nem mesma Noronha (Julio Cesar Pires Aranda), o patriarca, que oprime e submete as mulheres de sua família a condições de degradação, tem maior presença ou validade na condução da personagem, embora eu tenha ficado absorvido por sua “riqueza” e nuances que os grandes atores carregam consigo. Minha homenagem a todo elenco, direção e equipe técnica.

Assisti em Os Sete Gatinhos ao que sempre desejo das minhas montagens: o cuidado milimétrico com a performance, entregando ao outro a única sequência possível para um resultado impecável da cena. Viva Os Sete Gatinhos da Cia. Retalhos de Teatro de Santa Maria, por trazer à cena teatral do nosso Estado tamanha qualidade e volume cênico.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Agora, é o Feste 2020

O 5⁰ Festival Estadual de Teatro do Rio Grande do Sul (FESTE) já está agendado:
será realizado de 2 a 6 de dezembro de 2020.
Confira abaixo o vídeo com as atrações do FESTE 2019, produzido por Giuliano Bueno.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019


A Lágrima que Procuramos

Camilo de Lélis


Os Sete Gatinhos, de Nelson Rodrigues (1912-1980), montagem da Cia Retalhos de Teatro (Santa Maria), inicia com depoimentos gravados pelo autor. A voz de Nelson já é uma excelente entrada para o espetáculo. Seus silogismos catastróficos, suas heresias santas. “Um sujeito devia beijar uma única mulher em sua vida, ou simplesmente não beijar.” - poético, romântico, medieval. “Nem todas as mulheres gostam de apanhar, só as normais” - patético, machista, sexista. Não dá para explicar Nelson Rodrigues, nem lendo sua biografia O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro. A vida dele supera tudo o que ele escreveu, supera em tristezas, tragédias e absurdos. Tinha de escrever por dinheiro, para sustentar a família, complementar seus ganhos como jornalista e comentarista esportivo. A sua vida não era um jardim de flores, mas um deserto de espinhos. Embora algumas flores houvessem brotado nos cactos. Transitórios amores, algum sucesso de crítica e de público no teatro... Pouca coisa alegre em sua vida tumultuada.

Nelson gostava de provocar e desestabilizar a moral burguesa, os falsos carolas, a hipocrisia da família patriarcal. E, para isso, sabia que tipo de palavras era o mais apropriado para ferir e revoltar. Hoje, com as correções do discurso chamado politicamente correto, já ouvi dizer que quiseram tirar o Nelson do currículo das artes cênicas. Também tenho tido notícias que nosso maior dramaturgo contemporâneo está na crista da onda em montagens na Europa. Inclusive recentemente houve um festival só para ele em Londres. Enfim, como ele mesmo dizia “A unanimidade é burra”.

“De graça, não posso” diz a apaixonada Aurora para o cafajeste Bibelô. E assim começamos a adentrar no universo dos gatinhos, não mais apenas da obra de Nelson Rodrigues, mas da criação autoral do encenador Helquer Paez, com suas partituras simbolistas atravessando o realismo de Nelson. Vejamos. O Nelson inclui o simbolismo enquanto temática, ou seja, uma gata morre ao mesmo tempo em que dá à luz a sete filhotes. Um homem chora por um único olho, uma lágrima sem par. Outro homem sempre se veste de branco, etc. Porém, nas ações propostas nas rubricas, Nelson é realista. As cenas mais fortes, como o estupro de Silene, a adolescente que protagoniza a peça, se dão fora de cena, longe dos olhos, obscenas, literalmente. Sendo o próprio texto de Nelson um estupro aos ouvidos do espectador, que não pode deixar de se horrorizar com a realidade que suas palavras escancaram. O encenador Helquer Paez, por sua vez, mostra tudo, se ouve e se vê, em cena aberta, todo o horror das situações rodrigueanas. Aí é que entra o simbolismo na luz, na coreografia e na trilha sonora, que remete a estados subjetivos. Vemos e não vemos, sonhamos ou temos pesadelos. Assim é a encenação de Helquer Paez. 

O diretor sabe editar, decupar e fazer fusões em que uma cena termina dentro de outra cena.  É o que acontece numa das cenas iniciais, quando o casal Aurora e Bibelô estão nus, cercados por todos os outros atores vestidos, num ambiente simbolista, em que se escuta “A minha vida dá um romance” e “Atira, vagabunda, atira”; num movimento brusco de luz, sem corte, surge o realismo interior/casa, com a filha Débora trazendo um cheque para a mãe depositar na conta do enxoval de Silene, a única virgem entre elas, a esperança de redenção da família desestruturada pela miséria moral e a prostituição.

Estou escrevendo pela segunda vez sobre essa obra. Na primeira crítica, para o festival de Santa Rosa, enfatizei as referências de Totem e Tabu, de Freud, e da obra cinematográfica Feios, Sujos e Malvados, de Ettore Scola, sem esquecer da tragédia Édipo Rei, de Sófocles, na qual um homem está em busca de um criminoso, que se revela ser ele mesmo. Agora, vou me ater à direção, que soube imprimir sua marca registrada. Um encenador que tem personalidade, sabe fazer citações, mas não imita ninguém. Isso é uma dádiva, numa época em que se está fazendo teatro copiando imagens do YouTube. 

Nessa encenação de Os Sete Gatinhos, há algo bem peculiar. Apresenta-se uma transgressão da verossimilhança. A peça se torna anacrônica, mesmo sendo de época. Pois, como mostrar corpos tatuados nas mulheres da década de 1950? Ou uma mulher de cabeça raspada, sem ser interna num manicômio, naquela época? Essa transgressão formal, que poderia causar enfraquecimento na verdade cênica, torna-se na encenação de Paez, um libelo feminista. O presente adentra a cena e mostra como são as mulheres de hoje. Então temos um palimpsesto, estando na pele das atrizes e em suas expressões a mulher atual; e abaixo disso, no texto de Nelson, temos a de ontem, que ainda está viva, nos questionando sobre desejos secretos e taras escusas. Também em algumas peças do figurino há esse desencontro geracional. A calcinha de Silene está no passado e a lingerie de Arlete está no presente. Assim, as tensões se distendem mais e mais para além do texto, chegando à regressão de uma família contemporânea às origens paleolíticas. 

Outro elemento encantatório é a inserção brechtiana de uma cantora em dois momentos. A mesma atriz que interpreta Débora faz esse papel. Talvez ela mesma, a filha do miserável contínuo Noronha, seja uma cantora de boates ou cabarés de terceira classe. Uma atmosfera “on the road”, lembrando um pouco o cineasta e dramaturgo Sam Shepard, vem nos envolver.

A trilha sonora é muito bem escolhida e aproveitada nos momentos mais dramáticos, ela adoça a crueldade e nos diz que isso é um sonho ruim, que pode passar. Mas talvez não. Acredito que só o amor salvaria esses personagens tão frágeis diante do inusitado e avassalador destino humano. Um destino que não se atém à História. Um destino que se quer cósmico, tanto demoníaco quanto inefável.

Restam, soando em algum lugar inabitado, as palavras de Nelson Rodrigues, pronunciadas pelos trágicos gatos da peça, que estão à mercê de suas pulsões incontroláveis: “Canalhas somos todos nós”, “Agora podemos cheirar mal e apodrecer”, “Aurora, eu quero que você cuspa na minha cara”, “Silene, eu tenho uma filha da sua idade”.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

Um encenador proibido aos conservadores 

Raquel Guerra


Com direção de Helquer Paez e um elenco engajado, o espetáculo Os Sete Gatinhos, da Cia Retalhos de Teatro (Santa Maria) apresentou na tarde do dia 7 de dezembro, no Teatro Bruno Kiefer, um espetáculo que agradou a plateia e que fez jus à estética proposta pelo texto escrito por Nelson Rodrigues em 1958. A dramaturgia foi muito bem atualizada, e a montagem manteve sua contemporaneidade. Esta sensação é também resultado da direção do espetáculo e do empenho do diretor em manter sua concepção sobre a obra literária.

Estreada em 2015, a encenação de Helquer Paez traz nove atores que apresentam o retrato que Nelson Rodrigues (1912-1980) fez da família brasileira de seu tempo. Diga-se de passagem, uma família conservadora nos costumes, mas liberal na economia. Esse é um dos aspectos que chama a atenção na escolha de Paez pelo dramaturgo pernambucano, credenciado pelos 30 anos de experiência como artista e 25 anos à frente da Retalhes de Teatro.

Pode parecer uma ode ao encenador, pouco comum nos dias de hoje, mas creio que a obra teatral apresentada é resultado de uma boa encenação. Pelos seus anos de estrada, acredito que um artista como Helquer Paez, que circula com sua vasta produção no interior do Estado, concretiza aquilo que o próprio FESTE propaga: o Teatro é vivo e se renova nos festivais do Rio Grande do Sul. E que alegria ver a cena gaúcha pela perspectiva deste trabalho.

A prática viva do fazer teatral supera as escolas de Teatro, as academias, as oficinas, os conservatórios e qualquer espaço institucional que queira validar-se como instância do saber teatral. O Teatro é uma arte viva, e quem não pratica não vive. Nesse sentido, o pesquisador Laédio José Martins, em relato oral  sobre sua experiência na fruição da encenação de Helquer Paez para Os Sete Gatinhos, foi certeiro na análise: “Embora o elenco seja composto em sua maioria de atores jovens, e isso é mais mérito do encenador do que demérito do elenco, a profundidade e complexidade da relação humana que está no jogo proposto pelo dramaturgo não perde sua densidade, e o que vaza, no decorrer da narrativa, é a hipocrisia que cada um de nós transpira…” E a montagem transborda Nelson Rodrigues sobre nós, espectadores.

Logo no início, a primeira impressão é que o realismo de Nelson Rodrigues irá dominar sobre a encenação, trazendo à cena a voz do próprio Nelson, em suas crônicas radiofônicas, e associando-a à imagem do estereótipo do malandro carioca, homem da época. Talvez essas primeiras cenas do Os Sete Gatinhos sejam os momentos em que a encenação parece que irá assumir uma estética piegas, e que iremos ver o mesmo do mesmo. No entanto, em 90 minutos de espetáculo, o público sentado nas poltronas da Bruno Kiefer não perde a atenção e não fica entediado. O clichê rodrigueano parece que irá imperar, mas, apesar do respeito que o diretor demonstra para com a obra literária, parece-me que a encenação é que conquista o público.

Um elemento que chamou minha atenção foram as máscaras. Embora literal no caso das máscaras de gato, o uso das mesmas provoca um estranhamento na cena, que nos faz pensar na animalidade da relação familiar, humana e doentia presente nos vínculos expostos na peça: a irracionalidade e a estruturação de uma psiquê patológica surgem como o primeiro núcleo social dos personagens. A peça mostra que o interior na família tradicional não é exatamente o que prega a tradição…

Em relação à atuação, pareceu-me que o elenco mostra unidade, coerência e harmonia durante toda a encenação. Destaco o trabalho de Júlio Aranda: ele apresenta uma performance cujo trabalho físico/vocal se contrapõe à idade cronológica e à postura física cotidiana do ator. Aranda desenvolve muito bem o personagem do pai, não apenas pelo aspecto externo, mas pela vida interior que o ator assume ao interpretar tal papel.

Criador de longa trajetória, diretor, produtor, educador e ator ativo na cena teatral gaúcha, incentivador de várias gerações de artistas, Helquer Paez merece nosso reconhecimento como uma resistência da arte teatral não apenas em Santa Maria, mas nas diversas cidades em que trabalha e apresenta seus espetáculos. Merece destaque o fato que, por sua companhia, já passaram muitos atores, iluminadores, produtores e outros profissionais de artes cênicas. Com três décadas de profissão, é mais que merecido que um artista desse calibre tenha o reconhecimento da plateia, da crítica e dos organizadores dentro de um evento tão importante como o FESTE.

É preciso que se diga que um trabalho como este, selecionado para o FESTE, possibilita aos grupos do Interior que compartilham dos festivais a comprovação de que eles movimentam a arte teatral mais do que a academia, porque chegam a lugares geográficos e sociais que as escolas de Teatro não alcançam. Nesse sentido, um grupo como a Cia Retalhos de Teatro, que se mantém na ativa há tanto tempo, é mais que merecedor de participar de um festival como o FESTE. É digno de aplauso e de reconhecimento, como ocorreu na sessão pública que pude presenciar durante o belíssimo evento promovido pela Casa de Cultura Mário Quintana.  Vida longa ao FESTE! Vida longa à Cia Retalhos de Teatro! Vida longa ao artista Helquer Paez!

Crédito da foto: Giuliano Bueno