segunda-feira, 9 de dezembro de 2019


Estado de Alerta

Viviane Juguero


O espetáculo teatral Nosso Estado de Sítio, criado com base no texto Estado de Sítio, de Albert Camus, foi apresentado na noite do último sábado (7/12/2019), dentro do FESTE. O trabalho é fruto de disciplina desenvolvida na Faculdade de Teatro da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), ministrada pelo professor Marcelo Ádams, que também assina a direção e atua nesta peça que, como uma realização da UAU (União de Artistas da UERGS), segue sua jornada de apresentações fora da Universidade.

O texto original de Camus estreou em 1948 e tinha o objetivo de questionar a situação política da Espanha de então, que sofria os ecos da Segunda Guerra Mundial, extinguida em 1945, e da Guerra Civil Espanhola, finalizada em 1939, a qual havia polarizado o país em posicionamentos extremistas. Neste sentido, Camus utiliza a expressão “estado de sítio” como uma alusão ao fato de os direitos individuais estarem sendo violados pelo posicionamento autoritário do Estado. Cumpre salientar, no entanto que, legalmente, o “estado de sítio” ocorre quando, devido a uma questão urgente de desorganização social, como uma guerra, por exemplo, os poderes legislativo e judiciário são suspensos, a princípio, por trinta dias, pelo chefe do poder executivo. No caso do Brasil, o presidente, para solicitar essa ação extrema precisa ter a aprovação do Congresso Nacional. 

No enredo da peça de Camus, um governador corrupto comanda um local onde imperam a desigualdade e a subordinação imposta repressivamente. Com a chegada de um cometa, a Peste, personalizada em um personagem masculino (que é assessorada pela personagem feminina Morte), toma o poder já corrompido e amplia a sua atuação autoritária, decidindo, arbitrariamente, quem deve morrer ou viver, além de impor modos de vida e valores que regem uma vida burocratizada. Sobre esse aspecto, Camus cria uma narrativa na qual o amor entre Diego e Vitória é progressivamente dilacerado pela impossibilidade de amar em um ambiente desprovido de afeto.

No que concerne à montagem da UAU, o grupo partiu do texto de Camus devido ao fato de reconhecer no mesmo situações e questionamentos que estão presentes na política brasileira da atualidade. Neste sentido, a equipe artística inseriu, de forma crítica, diversos elementos da realidade contemporânea, como o gesto que reverencia a utilização das armas, propagado pelo atual presidente brasileiro e seus correligionários, além de relacionar sua postura autoritária e violenta à conduta nazista de Hitler. O grupo denuncia ainda a repressão policial sofrida em distintas manifestações da América Latina.

A encenação de Nosso Estado de Sítio inicia com artistas espalhados pelo teatro, vestindo um padronizado macacão azul que os caracteriza como operários da arte. A sonoridade de uma guitarra distorcida pontua um discurso que versa sobre o papel questionador da arte. A utilização da plateia como palco acontece em alguns outros momentos da peça, resultando na percepção de que o público integra esse coro e não está alheio às situações denunciadas no enredo.

A movimentação é muitas vezes coreografada e utiliza de distintos níveis e profundidades, associando a beleza da composição imagética a signos que remetem à subordinação e desumanização dos corpos e relações, tais como a padronização automatizada de alguns movimentos e sons, além de convulsões, corpos que representam pilhas de cadáveres, sombras que amplificam as dimensões do poder e do medo, além de referências sutis a posturas críticas de artistas como Bertolt Brecht, que surge não somente em elementos de ruptura presentes na montagem como na referência ao famoso grito mudo da personagem Mãe Coragem, quando ela se depara com a morte do filho. 

A encenação demarca ainda uma conexão entre o poder impositivo do Estado e da Igreja, posto que a Peste emite suas falas de um púlpito, em tom dogmático sacerdotal e com a voz amplificada por um microfone, o que sublinha o fato de que a sua voz é imposta por meio da força. A relação, além de historicamente respaldada, denuncia que o pensamento dogmático que impera no sistema patriarcal constitui-se por meio de uma base emocional calcada em verdades absolutas e não no pensamento reflexivo que, necessariamente, precisa considerar a complexidade de nossa constituição social. Neste sentido, vale refletir sobre o fato de que os textos são fruto de seu momento histórico, e a obra de Camus apresenta diversos signos que ratificam a cultura machista de sua época, seja pela posição subalterna da mulher, seja pela linguagem utilizada, como, por exemplo, a utilização do termo “Homem”, ao invés de “Humanidade”. Sobre esse aspecto, a montagem do grupo UAU optou por não atualizar o seu discurso sobre esta importante temática do século XXI, discutida, amplamente, em diversos países. De qualquer modo, a questão de gênero não passou sem ser discutida, devido à presença de uma cena que remete ao amor homossexual masculino.

Nosso Estado de Sítio possui muitas camadas de significação, trazendo diversas chaves que fazem refletir sobre o complexo caminho histórico que nos trouxe à situação atual, convidando à reflexão e à ação. Uma das mais potentes significações está na própria montagem, isto é, jovens artistas engajados em uma montagem artística socialmente comprometida. A própria postura do professor, ao se colocar como um colega cúmplice em cena, possibilita a percepção de que a ação crítica solicita a solidariedade e o afeto para que a transformação ocorra em cada camada das estruturas sociais. Este posicionamento está revelado na cena em que as personagens se dão as mãos, em uma corrente que forma o símbolo do infinito, o que alerta sobre a complexidade das bases afetivo-racionais que sustentam esses sistemas e sobre a necessidade de transformá-las desde sua interioridade. 

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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