segunda-feira, 9 de dezembro de 2019


A passagem de um cometa criativo

Pedro Delgado


Dando continuidade à programação do 4° FESTE, na noite de 7 de dezembro foi a vez de o coletivo União de Artistas da Uergs (UAU) pisar no palco do Teatro Bruno Kiefer para apresentar Nosso Estado de Sítio.  A peça tem direção de Marcelo Ádams e interpretação de Bruno Marques, Charlene Uez, Felipe Vigel, Jocteel Salles, Lucas Peiter, Marcelo Ádams, Paula Silveira, Rafaela Fischer, Rodrigo Waschburger e Savana Flores. 

A dramaturgia, que tem origem na obra O Estado de Sítio, de Albert Camus, se desenvolve a partir de dois eventos consecutivos que alteram as perspectivas de vida de um grupo de pessoas. A passagem de um cometa e o surgimento de uma peste são os fenômenos que inspiraram Camus, em 1948, a escrever sobre uma pequena aldeia de pescadores que presenciou tais fenômenos. O autor francês pretendia, com seu Estado de Sítio, retratar de forma metafórica a turbulência espanhola da primeira metade do século XX. Camus é só o ponto de partida para a criação da dramaturgia coletiva de Nosso Estado de Sítio, criação dos alunos do curso de Teatro: Licenciatura da Uergs (Universidade Estadual do Rio Grande do Sul). 

A peça de Ádams tem início com um surpreendente arranjo performativo, em que os atores executam uma coreografia ao mesmo tempo que tocam instrumentos musicais e tiram sons percussivos de diversos objetos, como sacolas plásticas, por exemplo.  Os primeiros dos 60 minutos da encenação têm ritmo leve, para em seguida se aprofundarem e constituírem um drama em que se sucedem cenas de certo extravasamento provocadas pela passagem de um cometa. A partir desse fenômeno são encenadas situações polêmicas e difíceis na vida cotidiana de um grupo de operários, cujas vidas são ameaçadas por uma nova peste. 

O UAU vai buscar equivalências nos escritos do autor argelino para colocar em cena a situação política atual do Brasil, de modo que a peste que aflige a população de Camus é posta em cena, metaforicamente, como a ameaça do totalitarismo, a retirada de direitos sociais adquiridos, o recuo nas políticas de direitos humanos e o não reconhecimento da existência de diversidades. Com o objetivo também de construir uma estética diferenciada, o grupo vai ao encontro de outras diretrizes, como o princípio da oralidade e o investimento na pesquisa da fisicalidade atorial, metodologia do trabalho do ator que busca evitar a reprodução das ações realistas, apostando, principalmente, na ocupação do espaço cênico com poucos elementos cenográficos. 

Dessa forma, Marcelo Ádams, que também é responsável pelos ajustes finais da dramaturgia, concebe um espetáculo com princípios bem definidos. Reserva uma área do palco para a execução de parte da trilha, onde se observam uma guitarra e alguns objetos através dos quais o elenco produz sonoridades que ajudam a compor a estética e a dramaturgia das cenas. Para os figurinos, o diretor elegeu macacões azuis utilizados por operários de fábricas que, ao mesmo tempo em que enriquecem e potencializam a temática da peça, também transformam o elenco em operários da arte, o que contribui enormemente para a atmosfera e a concretude sensorial e imagética dos corpos e da dramaturgia da cena. 

A direção de Ádams aposta, prioritariamente, na precisão e na criatividade corporal dos atores, que reinventam seus corpos construindo belas e dinâmicas imagens. A utilização do espaço cênico provoca a sensação de que o elenco se multiplica. Seus corpos estão em estado de devir máquina permanente, esses mesmos corpos também representam uma sociedade operária amedrontada e oprimida, que ora conduz o espectador a estados de indignação, ora, de forma quase paradoxal, devido à sátira feita ao sistema, provoca risos frouxos no espectador e até certo relaxamento dos corpos nas cadeiras. Em diversos momentos os atores expandem o espaço dramático de forma que o público parece fazer parte do grupo de operários. 

Destaco aqui, como exemplo, o momento em que dois personagens se colocam em meio ao público e dali se dirigem a ele como se falassem a uma massa de operários.  O roteiro de Ádams ousa desse modo ampliar a discussão sobre os desmandos da atual situação política brasileira, apresentando situações-limite e discutindo o atual contexto de tais personagens. Com isso, Nosso Estado de Sítio denuncia os preconceitos existentes ao mesmo tempo em que proporciona um espetáculo que assume perspectivas estéticas atravessadas pelo humor, o que, de alguma forma, agrada ao público. 

O espetáculo, de forma geral, é bem concebido e muito bem executado enquanto ocupação espacial, construção imagética e dramaturgia corporal. Entretanto, carece de um pouco mais de atenção na colocação textual da maioria dos atores. Percebe-se um elenco muito bem preparado corporalmente, mas com algumas dificuldades na pronúncia e na interpretação dos textos falados. 

De qualquer modo, levando-se em conta que se trata de um elenco bastante jovem, é certo que Nosso Estado de Sítio é de grande importância para o cenário das produções teatrais gaúchas, sobretudo, pela inteligência criativa, pela expressividade e pela dramaturgia das cenas. Bem como pela importância crítica sobre o atual cenário político brasileiro. Parabéns ao grupo União de Artistas da Uergs e vida longa ao Nosso Estado de Sítio!

Crédito da foto: Giuliano Bueno

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