sábado, 7 de dezembro de 2019


O Teatro contra o Big Brother

Carlinhos Santos
 

Em O Rapto das Cebolinhas, clássico da dramaturgia brasileira dedicado a crianças e adolescentes, Maria Clara Machado constrói uma engenhosa trama sobre raptos e investigações, tornando-se uma peça referencial para mais de uma geração de apreciadores de teatro. 

Em A Droga da Obediência, texto do paulista Pedro Bandeira, há igualmente uma história sobre sequestro, agora de meninos da escola Elite. Um grupo de alunos resolve investigar os estranhos desaparecimentos de seus colegas de classe, o que rende uma imbricada sequência de fatos e situações que, no caso da montagem da Companhia Oficina de Teatro, de Santiago, é interpretada por uma meninada que está no trânsito entre a infância e a adolescência, com idades entre seis e 15 anos.

O exercício do teatro entre crianças e adolescentes é um recurso significativo para muitas frentes: desinibição, senso de coletividade, potencialização da criatividade e, claro, o despertar de possíveis futuros atores, dramaturgos, enfim, fôlego novo para uma arte já milenar. E colocar intérpretes como estes da companhia santiaguense em cena instiga muitos vetores de interpretação.

É saudável e bonito ver a meninada num esforço de “ser gente grande em cena”. Mas há uma fragilidade evidente nessa opção, uma vez que estão distanciados desse universo e não têm vivência ou experiência para tal. Daí, o risco da caricatura é uma armadilha. Ora eles fluem com tranquilidade, vez em quando assumem suas fragilidades entre risos nervosos e indicações de “deixas” para os colegas. E isso, numa possível experiência inaugural desses intérpretes no palco, tem suas nuances, seus prós e contras.

Feita esta pontuação, é também importante registrar o esforço da trupe para estar em cena, construir as materialidades das sequências da história, com os entra e sai de pufes coloridos. Eis, então, uma possibilidade de olhar para a montagem como uma alegoria multicolorida sobre as possibilidades da afirmação de identidades, da montagem e desmontagem dos jeitos de ser no palco ou para além dele.

Espécie de aventura policial que namora como outras histórias ou séries literárias já antológicas como as da turma d’Os Seis, de Irani de Castro, A Droga da Obediência alude a uma sinistra articulação para comandar à exaustão corpos jovens e cheios de vitalidade. Uma metáfora possível para as diferentes formas de exploração da infância e adolescência em tempos instáveis no país e no mundo? 

Pelo sim, pelo não, é sintomático que a voz que dá comando às ações negativas e más da trama é adulta e externa à cena. Um big brother ameaçador, à espreita de ceifar vontades e potências para o jogo, a alegria a espontaneidade, tentando raptar o futuro de uma geração que, sintomaticamente, abre a cena com fones de ouvido? Ouvir, falar e planejar o que diante de tantas incertezas? Afinal, que futuro muitas camadas da população que não frequentam uma escola chamada Elite têm pela frente? Será que é possível que eles sejam “Os Karas” um dia? Talvez essa seja uma possível reflexão a se fazer diante da montagem derivada da Oficininha de Teatro desenvolvida na cidade de origem do grupo, com direção de Pablo Fernando Damian. 

No contexto do FESTE, a presença de crianças no palco é um dado significativo sobretudo, como já se assinalou no começo do texto, porque há um despertar para muitas outras primaveras das artes a partir desse exercício dramatúrgico provavelmente inaugural para a maioria deles. E, assim, quando conseguirem refutar a droga da obediência, saberão ser protagonistas de suas próprias escolhas, na construção de um futuro mais estável e de autossuficiência, mediado pelo protagonismo das muitas aventuras que ainda terão pela frente.

Crédito da foto: Giuliano Bueno

Nenhum comentário:

Postar um comentário